Os olhares de gozo magoavam-me. Por vezes faziam-me sentir tão pequena, mas tão pequena, como se fosse do tamanho de uma pequena formiga indefesa…
- Se pensas que algum dia vais ser promovida, esquece lá isso! Só vais ser promovida no dia de s. Nunca à tarde!
Eu bem os ouvia a falarem assim uns para os outros, mas eu sabia que era para mim que falavam. Eram dissimulados mas não o suficiente. Conseguia perceber perfeitamente que queriam que eu ouvisse. Que me eram dirigidas sem no entanto o admitirem.
Depois eu sentava-me na minha pequena secretária, rodeada por outras pequenas secretárias, onde esses mesmos colegas se sentavam, olhando-me, controlando-me, humilhando-me com risos escarninhos e piadas estúpidas.
A noite as suas palavras e risos maus continuavam a ecoar na minha cabeça uma vez e outra, uma vez e outra, até que entravam pelos meus pesadelos dentro acompanhando-me pelo resto da noite. Depois de manha tinha que lá voltar, à rotina, aos colegas. Aturar as caras de gozo, a maledicência, a rudeza daquela gente. Era um suplício. Era um sacrifício.
Era um sacrifício que se repetia uma vez e outra, uma vez e outra, semanas, meses, Outono, inverno…depois um dia aconteceu alguma coisa de estranho que ainda hoje não sei explicar…
Vinha a subir as escadas íngremes de acesso ao escritório quando algo me chamou a atenção. O calendário marcava 30 de Fevereiro! Na altura ia tão deprimida que apenas achei que era mais uma brincadeira parva dos meus colegas. Avancei até ao cimo das escadas e encontrei a telefonista, uma das línguas mais mordazes.
- Bom dia menina angélica.
Que espanto, ela nunca me tinha cumprimentado assim!
- Bom dia menina Angélica, como está?
Era o Filipe da contabilidade. Estão todos no gozo, pensei eu.
- Menina Angélica, bom dia. Quer que lhe leve o café ao seu gabinete já?
Os meus olhos esbugalhados e as minhas pernas bambas, não sabia o que pensar. Na minha frente estava o mesmo escritório de sempre, com as mesmas secretárias de sempre. No entanto algo tinha mudado. Havia algo de novo, uma luz diferente, um cheiro diferente. Avancei mais um pouco e cheguei perto da minha secretária. Estava limpa e sem um único papel. Também tinham desaparecido as fotografias dos meus sobrinhos, os meus lápis coloridos, a minha planta…
- Mas…. - Balbuciei.
- Menina Angélica, está tudo bem. Já deixei o café na secretária tal como gosta. Também deixei a ordem de trabalhos para hoje passada a limpo.
Sem perceber avancei atrás da Graça. Graça era uma mulher alta e cheia de si. Cabelos compridos loiros e pernas bem feitas faziam as delícias dos homens no escritório inteiro. Ela avançou bamboleante até a uma porta onde costuma estar o Dr. Ramos, chefe do departamento de recursos humanos. Na porta dizia angélica Sampaio em vez de Dr. António Ramos.
Não sei quanto tempo estive ali a olhar para aquela porta. Depois como um autómato dirigi-me à porta, abri-a. Lá dentro estava uma secretária enorme de madeira clara. Em cima as minhas fotos e a minha planta. Por trás uma enorme janela por onde entrava um sol fantástico de inverno.
Avancei e sentei-me na cadeira confortável. À minha frente o computador, ao lado os meus lápis e a canetas. Uma placa dizia: Angélica Sampaio - directora de recursos humanos
Olhei para os papéis a minha frente e comecei a ler a ordem de trabalhos.
1º Reestruturar escritório.
2º Promoções do pessoal administrativo e seus respectivos aumentos…
3º…
Olhei pela janela e vi o céu azul. Sorri. Pela primeira vez estava a acontecer-me algo de bom. Pela primeira vez sentia-me tranquila. Pela primeira vez uma esperança brilhava no meu firmamento. Lembrei-me de todas as vezes que eles disseram que só seria promovida no dia de s. Nunca. Olhei para o calendário na secretária e lá estava marcado com um enorme círculo vermelho: 30 de Fevereiro.
Escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica de Histórias
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