Domingo, 28 de Fevereiro de 2010

Pecados Capitais

 

 

 


 

O choque seria impossível de evitar. O carro aproximava-se de mim a uma velocidade vertiginosa. Eu sabia que tinha que me desviar mas as minhas mãos estavas quietas de pavor. Estava petrificado. Apenas numa fracção de segundos a minha mente viajou à velocidade da luz. Sabia que iria morrer em menos de um minuto, sabia que não estava pronto. Sabia que era demasiado jovem, mas também sabia que tinha demasiadas contas a prestar a Deus. Se houvesse Deus. Agora já não tinha a certeza de nada. E se houvesse Deus e eu tivesse passado a vida toda a não acreditar? Como poderia agora enfrentá-lo? Como seria entrar na porta dos céus e sentir o peso do juízo de Deus nos ombros? Seria um peso demasiado grande para poder suportar. Todas as imagens que me ensinaram a temer na infância e que a tanto custo me tinha conseguido livrar voltaram em catadupa. Umas em cima das outras voltavam uma vez e outra, uma vez e outra. E o carro não parava de se aproximar. Eu sabia que tinha de fazer alguma coisa, mas estava imobilizado pelo medo. Os faróis do outro carro cada vez mais próximos, cada vez mais próximos, encandeando-me os olhos. Fechei os olhos e desisti.

O som de uma buzina a tocar furiosamente, um vento estranho que me empurrou o carro para a berma. Senti raspar nos rails até que o carro parou e ficou silencioso. Abri os olhos e nada. Nada a não ser a escuridão da noite. Deixei-me estar, incapaz que estava de me mexer. Depois senti as calças quentes e húmidas e percebi que tinha urinado no momento aterrador em que pensei que seria o momento de morrer. Como um autómato liguei o carro novamente, fui para casa, deixei-me estar debaixo do chuveiro mesmo com roupa e tudo. Estava perdido. Abri os olhos por entre a água que me corria morna pela cara e corpo dorido e envergonhado e pensei que tinha que me ir confessar.

- Sr. padre. Eu quero confessar-me, mas não o quero fazer ali no confessionário à vista de todos. Tenho tanto que contar….posso fazê-lo como se conversássemos?

- Claro que sim… vamos para ali... Estamos mais à vontade.

- Tenho que limpar a alma….quero estar pronto para morrer quando chegar a hora. Não me tenho portado bem…

- Estamos sempre a tempo de nos arrepender meu filho…

Um dia desejei a mulher de outro homem. Ela era absolutamente deslumbrante. Ela não me queria como homem mas como amigo. No entanto isso não me chegava. Estava louco por ela. Por isso fiz-me amigo do marido dela para poder se convidado para a sua casa, para puder olhar para aquela mulher fabulosa. Para poder tê-la no meu campo de visão sempre que quisesse. Depois, aos poucos, convencia-a que o marido a enganava e enquanto isso fui-me aproveitando da proximidade e da sua fraqueza momentânea para me insinuar no seu coração. Não demorou muito até conseguir fazer amor com ela. Levei-a à loucura. Sempre soube como fazer isso. Na própria cama deles fazíamos amor loucamente. Ela convencida que o marido a enganava e eu sem remorsos pela mentira. Mas ela tinha remorsos. Ela tinha muitos remorsos por ser fraca nas minhas mãos. Eu estava loucamente perdido de amores por ela. E ela por mim, também o sei. No entanto sei que não faria nada que prejudicasse aquele homem. Nessa altura, cerca de dois meses depois de termos feito amor a primeira vez, eu já não suportava a ideia dela a dormir com outro homem. Comecei a beber demais. Todos os dias ia para casa e para não pensar no que ela fazia na cama com o marido eu bebia. Primeiro um, depois dois e algum tempo depois era capaz de beber uma garrafa inteira de whisky. Um dia fui lá com a intenção de lhe pedir que saísse de casa para vir comigo. A porta estava aberta e fui até ao quarto de casal onde eu já tinha estado com ela antes. Pela porta aberta vi-a em cima dele, nua, os peitos a oscilar com a respiração ofegante. Faziam amor e gemiam os dois. Encostei-me a parede do quarto pelo lado de fora sem fazer barulho mas mal podendo suportar o coração a bater dentro do peito. Tinha que matá-lo. Foi só isto que pensei. Tinha que matá-lo. Não poderia ser de outra maneira. Aquela visão era uma tortura na minha cabeça. Só com ele morto poderia sossegar. Comecei a pensar num plano. Todos os dias pela noite dentro de copo na não imaginava-o a morrer de várias maneiras. Por fim achei que tinha encontrado a forma mais fácil e que ninguém saberia que tinha sido eu. Nem mesmo ela saberia. Depois tê-la-ia nos meus braços Esta noite fui a casa deles. Esperei que ele saísse para o convidar para um passeio a pé. Quando por fim ele aparecei e eu fiz de conta que tinha acabado de chegar. Fomos andando, ele falando alegremente e eu ansioso que aquele momento terminasse. Deixei-me ficar para trás. A arma queimava a minha mão. Estava pronto a tirar-lhe o relógio e a carteira para compor a história do crime que sairia nos jornais. Por fim, no último momento fraquejei. Fraquejei mas não desisti. Fraquejei por achar que seria descoberto. Mas não desisti. Era apenas um adiamento por precaução.

Depois peguei no carro e fui para casa. Mas no caminho algo aconteceu. Estive perto da morte e arrependi-me. Não sei como mas dentro de mim algo mudou. Algo se quebrou dentro da minha alma. Como se de repente tudo aquilo tivesse deixado de fazer sentido. Como se os todos meus sentimentos e emoções se tivessem baralhado e voltado a uma determinada ordem diferente da anterior. Foi um renascer…

Preciso de perdão padre. Preciso de voltar a sentir que a vida faz sentido. Preciso de perdão porque pequei. Cometi vários pecados mortais, preciso mesmo de perdão….

 

 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica de Histórias

 

 

 

 

 

 

 

 

sinto-me: ...
publicado por magnolia às 23:46
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2 comentários:
De Cris a 1 de Março de 2010
Fiquei colada ao texto até terminar... Gostei muito! Aliás estou a gostar desta nova linha de contos que nos apresentas de há uns dias para cá!!
Fico a aguardar o próximo...

Beijinhos
De magnolia a 2 de Março de 2010
O teu comentário foi um elogio e pêras!!!:))
Obrigada amiga!!

Beijinhos

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