Domingo, 7 de Março de 2010

O espelho

 Ele ia por ali pelo corredor coberto de retratos de gente famosa e espelhos, sem pressa aparente. Pensava em coisas sem nexo e nem reparava no que via. No entanto, ali entre o retrato do bisavô que tinha sido governador e o da sua tetravó marquesa, algo lhe chamou a atenção. Voltou para trás e postou-se em frente ao espelho. Abriu a boca como se fosse falar mas fechou-a novamente sem sequer ter emitido um único som. Algo estava ali muito errado. O espelho devolvia-lhe uma imagem errada, absolutamente errada. Em vez de ver o seu rosto, via a parte de trás de si próprio. Como era aquilo possível. Ainda pensou que estava a ter alucinações, que algo que comera lhe tinha feito mal. Beliscou-se e não conseguiu evitar um gritinho de dor. Não estava a ver mal. Efectivamente o espelho devolvia-lhe a o reflexo das suas costas. Mas como era isso possível se estava de frente? Olhou para trás de si, tentando perceber se haveria ali algum truque. Mas não, nada. Tudo tranquilo, igual a todos os dias. Os retratos cobertos de um pó fino, as paredes cobertas de papel de parede amarelecido pelo tempo. Os espelhos com as molduras douradas já de outro século estavam a ficar sem prata por trás e alguns até já nem conseguiam devolver a imagem como deveria ser. Mesmo assim nada fora do normal. Olhou-se ao espelho novamente e confirmou o que já tinha visto antes: a sua nuca, o cabelo grisalho, as costas estreitas… sentiu medo por não saber explicar o que via. Sentiu medo do desconhecido.

Um livro. Estava ali um livro pousado no móvel por baixo do espelho. Não o reconheceu. Talvez estivesse ali a resposta… abriu-o a medo e não entendeu nada do que lá estava escrito. Estava escrito em caracteres estranhos que nunca tinha visto, podia ser uma linguagem antiga, não sabia. Mesmo que ali estivesse a resposta não servia de nada porque não conseguia ler aquilo…. Fitou-se mais uma vez à espera de ver um rosto desanimado mas só conseguiu ver-se de costas. Saiu dali a correr o mais que pode. Precisava de ar. Ar fresco e puro.

Percorreu o jardim onde dezenas de magnólias raras mostravam ao mundo a sua beleza. Enquanto isso respirava fundo para tentar perceber se tudo não passara de uma alucinação. Talvez tivesse sido apenas isso, uma alucinação. Estava cansado, a mente talvez lhe estivesse a pregar partidas. Mais calmo voltou para dentro. Depois de um momento de hesitação voltou ao espelho e forçou-se a olhar novamente. Um frémito de desilusão percorreu todo o seu corpo. Lá estava a mesma imagem reflectida: as suas costas. As pernas tornaram-se mais fracas e ele encostou-se a uma parede e fechou os olhos. Depois, recorrendo a uma grande força interior, voltou a pegar no livro. Sentou-se no chão perto do espelho e abriu o livro. Depois de ver com mais atenção percebeu que aquilo não era uma linguagem estranha mas sim um código. Estava ali uma mensagem encriptada, tinha agora a certeza. Era só tentar perceber o que era. Durante duas horas esteve ali sentado, a tentar decifrar a mensagem. Já lhe doíam as costas e a noite caíra por completo. Lembrou-se que tinha que comer mas não deixou o livro nem por um momento. Comeu com ele e depois foi para o quarto com ele. Deitou-se mas não conseguiu dormir. E dois dias depois ainda não tinha dormido. Estava obcecado por entender. Estava febril. Por fim conseguiu perceber como estava escondido o texto e num instante toda a informação se tornou clara e penetrou na sua mente.

Em meados do século XVIII um homem que vivia numa terra longínqua fez um espelho. Dizia-se que esse homem tinha poderes sobre todas as coisas da natureza: as vivas e as mortas. E esse homem de nome Galic, tinha em tempos sofrido horrores por perder a sua jovem filha. Uma filha que era muito bela mas muito vaidosa e que se perdeu para sempre nas trevas da loucura por tanto se admirar e adorar ao espelho e por isso num dia de desespero ele lançou uma maldição em todos os espelhos que a sua ira alcançou. Quem se olhasse num desses espelhos não veria nunca os seus próprios olhos, seu próprio rosto, a sua própria beleza, para que a vaidade jamais pudesse cegar as suas almas corruptíveis. Depois, com o passar dos anos os espelhos foram-se perdendo pela terra e o mundo esqueceu esta maldição.

Ele compreendeu então que o seu coração estava tomado pela vaidade e não se tinha dado conta disso. Reviu os últimos dias da sua vida, os últimos meses e percebeu que se tinha transformado numa pessoa diferente, pior e que isto tinha sido uma chamada de atenção. Tinha que mudar. Precisava de mudar. De ora em diante aquele espelho seria o seu vigilante, seu guia que não deixaria desviar-se do bom caminho…


texto de ficção escrito para a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira

 

sinto-me: ...
publicado por magnolia às 22:40
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4 comentários:
De Cris a 8 de Março de 2010
E cá estou eu, mais uma vez, tomada de amores pelos teus textos!! Mais uma deliciosa narrativa!
Fiquei cá a pensar que todos deviamos poder ter um desses espelhos em casa... para medir o nosso grau de vaidade e nos alertar quando estivéssemos a pisar o risco!!

Beijinhos
De magnolia a 9 de Março de 2010
Tu continuas a ser o meu cais.....és tu que me anima a nunca parar...

muito, muito obrigada:)


beijinho grande

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