imagem retirada da net
No computador a imagem parada de uma folha de Word ainda em branco. Na secretária roída pelo bicho da madeira uma imensidão de papéis por arrumar, que faziam duvidar de eficiência do sujeito sentado na grande cadeira preta já muito gasta e rota. No cinzeiro um cigarro a consumir-se sozinho. A lâmpada no tecto iluminava mal. Apenas o suficiente para que se visse o sitio das coisas. A janela ainda aberta mostrava a cidade iluminada.
Miguel vestia uma camisola de manga curta branca que já tinha visto lixívia …. Em tempos idos. O ar estava impregnado de cheiro a tabaco, perfume barato odores corporais. Miguel tinha as mãos apertadas uma na outra atrás da nuca e olhava pensativamente para a folha em branco.
Nenhuma ideia lhe ocorria. Nada.
“Maldito consultório sentimental.” Tantas choronas a pedir conselhos idiotas com pensamento idiotas
Mais uma vez tentou imaginar uma resposta politicamente correcta para dar aquela mulher que perguntava se poderia engravidar porque beijou o namorado. Também poderia ser gozo. Miguel achava impossível que alguém pensasse isso verdadeiramente. No entanto tinha que responder, não importava nada a sua opinião. Todos os dias lhe chegavam histórias fabulosas incríveis de tão parvas que eram. Todos os dias os emails lhe entupiam a caixa de entrada e a caixa do correio estava atafulhada de cartas cobertas de caligrafia quase analfabeta. Era triste. Sentia-se frustrado. Era um trabalho que não servia para nada. Nem ajudava ninguém, gozavam com ele e ganhava uma porcaria. Estava tudo mal. Sentia-se mal.
Pegou no casaco e saiu para a rua. Precisava de arejar. Estava escuro e não conseguia encontrar nenhum café aberto para comprar cigarros. Pelo menos o ar da rua ajudou-o a clarear as ideias…
“Que trabalho estúpido o meu….”
Miguel era boa pessoa. Aceitara aquele trabalho jornalístico porque tinha contas para pagar. Mas não era de todo o que gostaria de fazer. Nunca, em tanto tempo de faculdade, lhe tinha passado pela cabeça utilizar os seus conhecimentos de escrita para aquilo. Era quando uma desonra. Chutou uma pedra e doeu-lhe o dedo grande do pé. Um palavrão saiu-lhe entre-dentes.
“Se ao menos no meio de todos estes parvalhões alguém precisasse MESMO de ajuda…”
Dias depois teve uma surpresa quando chegou ao escritório. Uma rapariga esperava-o. Não teria mais de dezoito anos mas estava muito pintada e aparentava mais. Quando abriu a boca para dizer a primeira frase percebi que era uma pessoa pura da aldeia. Aquela capa de maquilhagem e roupas extravagantes era para enganar o primeiro olhar dos mirones.
- Preciso de ajuda senhor…
Miguel ficou sem saber o que dizer. Era a primeira vez que alguém o abordava. Era a primeira vez que tinha frente a frente alguém a quem respondera no consultório sentimental. Olhava para a rapariga e não dizia anda. Estava mudo.
- Preciso de ajuda….disse-me que deveria dizer ao pai do meu filho e agora ele escorraçou-me de casa e disse que nunca mais me queria ver…
As lágrimas corriam-lhe pela cara e Miguel teve uma vontade imensa de a abraçar, de a confortar. No entanto não se mexeu. Não fazia a mínima ideia de quem fosse a rapariga. Mesmo!
- Agora não tenho para onde ir, nem o que comer. Não sei o que fazer. Ajude-me senhor….eu confiei em si…
Miguel sentou-se e acendeu um cigarro. A rapariga mantinha-se de pé. Miguel olhou-a mais uma vez e fez sinal para que se sentasse na cadeira em frente à sua.
- Diga-me em primeiro lugar como se chama menina…
Uma expressão de surpresa atravessou-lhe o rosto. Miguel percebeu imediatamente que ela não estava à espera que ele não se lembrasse dela. Era ainda mais inocente do que tinha pensado.
- Margarida. O meu nome é margarida. Escrevi-lhe em tempos quando descobri que estava grávida. Não tenho pais, morreram. Também não tenho amigos porque vim da terra e não conheci ninguém ainda. Tenho estado quase escondida em casa… Quando lhe escrevi, imaginei que me fosse ajudar. Em vez disso correu tudo ao contrário.
A jovem mulher escondeu o rosto nas mãos e soluçou alto. Miguel não sabia como fazer, não sabia o que pensar sequer…
- Em que posso ajudá-la? Eu também não sei muito bem como fazer….diga-me o que posso fazer…
- Não sei…
Miguel olhou-a mais uma vez e sentiu uma pena infinita da rapariga. Ela estava sozinha, grávida, sem dinheiro, sem família. Desconfiava que se não a ajudasse agora ela se perderia no mundo e quem sabe que futuro seria o dela. Negro, disso não duvidava. Mas não sabia como ajudar… sentia-se impotente.
Levou -a para sua casa e deu-lhe de jantar. Fez a cama de lavado e cedeu-lha. Quando ela adormeceu ele ficou a olha-la durante muito tempo, depois deitou-se no sofá e passou a noite em claro sem conseguir conciliar o sono.
De manhã aconselhou-a a abortar. A esquecer o homem que a abandonara e a recomeçar tudo de novo. Margarida bateu a porta a chorar e Miguel não conseguiu deixar de a ouvir durante muito tempo na sua cabeça. Já tinham passado alguns minutos, ele não sabia bem quantos, quando se arrependeu do conselho. Tinha sido estúpido, muito estúpido. Miguel começou a correr sem parar, andou por muitas ruas, bateu a portas, perguntou a muita gente se a tinham visto e estava quase a entrar em desespero quando a viu. Margarida estava sentada no paredão da praia. Olhava o mar com uma expressão vaga de desalento.
- Margarida…desculpa….não faças o aborto. Não o faças…
Ela olhou-o como uma expressão interrogativa. Estava confusa e ele estava com um aspecto estranho. O suor corria-lhe pelo rosto cansado e o cabelo estava desgrenhado e as roupas coladas ao corpo.
- Margarida….vamos para minha casa. Podes lá ficar algum tempo. Vou ajudar-te. Tratas de ti e do bebé. Vais conseguir resolver a tua vida mesmo sem um pai para essa criança. Verás que sim. Vou ajudar-te no que puder. Não te vou desiludir.
Miguel não a desiludiu. Ajudou-a a encontrar uma casa de acolhimento, um trabalho. Ajudou-a com a amizade, com o carinho e a dedicação de amigo.
Depois, Miguel não conseguiu voltar a escrever para aquele absurdo consultório sentimental. Aproveitou os seus conhecimentos jornalísticos para escrever pequenos artigos para revistas sobre a maternidade, a parentalidade, as crianças órfãs, o aborto e muitos outros temas pertinentes, tentando sempre ajudar as pessoas a compreender e a encontrar a melhor forma de agir nos casos como o da margarida.
Miguel veste uma camisa branca, tão branca que fere a vista. Na sua frente uma secretária desarrumada e uma folha de Word em branco espera por ele. Pela janela aberta o sol entra morno acompanhado do riso fácil de duas crianças. Uma mulher pede silêncio para não importunar o trabalho do pai. Miguel sabe que ajudou muitas mulheres e homens desde aquela noite em que conheceu a Margarida e isso fá-lo sentir felicidade pura. Miguel ouve as crianças e sente uma alegria monstruosa. Um sorriso abre-se-lhe no rosto. Já sabe o que vai escrever!
Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira
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