O Carnaval está ai à porta de novo. Sempre que se aproxima mais uma data importante parece-me sempre impossível que o tempo tenha passado tão depressa... Indigno-me e fico ligeiramente amuada e é mais ou menos por aqui que costumo ir rever o meu baú dos tesouros para comprovar que o tempo passou. Mas hoje não pôde ser logo quando me apeteceu porque ainda o almoço estava a ficar pronto no forno, quando chegaram os meus filhos, netos e bisnetos. Os mais pequenos traziam fantasias de abelhinhas, vaquinhas e outros animais fofinhos. Os mais velhinhos eram por momentos policias, índios e cowboys. Os meus netos já estavam ligeiramente grisalhos e as barrigas denotavam muitas horas de trabalho de secretária. Os filhos…bem os filhos já estavam quase tão velhotes como eu...
Almoçamos entre gritinhos e gargalhadas das crianças e os meus filhos procuravam aproveitar ao máximo a presença dos seus próprios filhos, os meus netos. Eu olhava-os enternecida e agradecia silenciosamente a Deus que me tivesse dado anos de vida suficientes para poder ver momentos maravilhosos como este. Apenas faltava ali a pessoa que tinha sido durante quarenta e cinco anos o meu companheiro de vida, aquele a quem tinha amado incondicionalmente e que me tinha sido arrancado dos braços há já dez anos. No entanto, a saudade era tanta como no dia em que, com apenas dezoito anos me tinha deixado ficar na plataforma da estação dos caminhos-de-ferro para ir cumprir o serviço militar, porque nem mesmo agora tinha deixado de o amar. Uma lágrima quis descer pelo meu rosto e a custo levantei-me, fingindo ir a cozinha, mas na verdade indo ao quarto que tinha sido o nosso. Fui até à caixa das fotografias. Precisava de lhe dizer que tinha saudades e que a família estava toda ali de visita e que os pequenos estavam lindos. Peguei numa das fotos mais antigas, depois noutra já mais velho, depois noutra e noutra e noutra. Quando dei conta já tinha muitas fotos espalhadas na cama que durante tanto tempo partilhamos.
Entre elas vi aquelas fotos que tantas vezes tínhamos visto juntos no passado... Talvez uma das mais antigas que ali estavam na caixa das memórias. Era uma das poucas fotos que tinhas trazido contigo no dia do nosso casamento. Contavas sempre entre muitas gargalhas que tinha sido um dia muito estranho o dia em que tiraram aquele retrato. Os avós tinham insistido que era preciso tirar um retrato dos netos porque estavam todos tão bonitos nos seus fatos de Carnaval. Dizias sempre que tinha sido um autentico milagre o fotografo ter conseguido que ficassem todos quietos e juntos para se poder tirar a fotografia. O que todos queriam mesmo era ir brincar e correr para o jardim. Tinha sido o último retrato de família antes que todos se começassem a dispersar.
Depois das gargalhadas olhavas cada uma das pessoas da imagem e contavas que a prima Maria, vestida de criadinha, tinha morrido no ano seguinte de tuberculose. O primo José, vestido de engraxador, tinha ido estudar para Coimbra e era agora doutor. O primo Manuel, vestido de arlequim, tinha ingressado no seminário e a prima Adelaide, vestida a rigor de dama antiga, tinha casado com um estrangeiro e depois disso não tinha voltado a Portugal. Contavas o que tinha sucedido a cada um e com o passar dos anos as histórias aumentavam o volume e evoluíam tal como a própria vida. Era a partir dali, daquela imagem, que construías as histórias da tua família para me poderes contar tudo o que eu não sabia de ti. Era para ti uma referência, uma cábula, uma memória em papel para não te deixar esquecer nenhum deles... E, mesmo depois, quando a doença te começou a fazer esquecer as tuas memórias, gostavas sempre de ir ali à nossa caixa das recordações para lembrar o que por vezes teimava em querer desaparecer...
Com o retrato na mão olhei pela janela. Os meus bisnetos brincavam no meu pequeno jardim, os meus netos e os meus filhos estavam sentados nos bancos de jardim pintados de branco que eu própria tinha pintado há muitos anos atrás… Guardei tudo na caixa e limpei as lágrimas. Quando cheguei ao jardim levava comigo um sorriso aberto.
- Meus queridos filhos, tenho a certeza que um de vocês tem uma máquina fotográfica. Gostava muito de ter um retrato de família no dia de hoje… Acham que podem fazer esse gostinho aqui à vossa velhota?
Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica das Histórias
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