Quando naquele dia comecei a caminhar não sabia o que me esperava. Na verdade, por muito que pusesse a minha imaginação a trabalhar, da qual até me costumava gabar, não teria sido capaz de imaginar tudo o que aconteceu. Conheci uma espécie de novo mundo, um universo à parte. E na verdade, amei.
A manhã ainda não tinha nascido quando pus os pés ao caminho. Depois, o astro majestoso elevou-se até ao céu, devagar, muito devagar, devagarinho como que se estivesse a espreguiçar-se, abrindo os braços e estendendo-os, derramando a sua luz ainda apenas morna, nas árvores, nas casas, nas estradas, nos cabos de alta tensão e nos ninhos nos beirais.
Depois, a manhã passou devagar. Caminhei entre carreiros de ervas verdes e viçosas, onde os malmequeres selvagens irrompiam sem medo das solas dolorosas dos sapatos, e o asfalto quente e pegajoso que ao longe parecia derreter. Depois foi a tarde que veio sobranceira e feliz sempre perto, muito perto do mar. A maresia envolveu-me a pele e deixou tatuadas imagens feitas de sal. As gaivotas presentearam-me com melodias que só elas conheciam e os pulgões do mar deixaram-me passar sem se deixar ver. O sol quase me cegou porque eu não conseguia deixar de olhar para aquela enorme bola de fogo brilhante, maravilhosamente quente e distante.
Foi então que o sol se pôs no horizonte e os meus pés levaram-me, meios cegos, por entre rochas e escarpas. Uma falésia e depois, ao virar da esquina, foi como se tivesse viajado apenas num minuto para um lugar distante, desconhecido mas absolutamente maravilhoso...
A relva muito verde era um convite. Descalcei-me e senti-a macia debaixo dos meus pés massacrados pela viagem. A relva não se quebrava, pensei que seria feita de uma matéria especial, uma espécie de borracha viva, pulsante e muito bela. Depois ao longe avistei um lago feito de águas azuis. Nunca tinha visto um lago de águas tão azuis, tão brilhantes, tão serenas. Deixei-me ir até ele como se ele tivesse capacidades hipnóticas e eu não tivesse como fugir. Quando toquei com os pés nus na água, parei. A água não era fria como tinha imaginado, mas sim um pouco menos que morna. Agradável, convidativa, confortável. Fechei os olhos por momentos. Podia sentir no ar os restos do calor do dia. A minha pele estava quente e as roupas, poucas, pareciam demais mesmo àquela hora do dia. Abri os olhos e olhei em volta. Ninguém. Ao longe distinguia a vegetação luxuriante a subir pelas rochas que formavam um círculo alto à minha volta. Já não via a praia, nem o mar, nem a linha do horizonte. No entanto não estava escuro, era como se aquele lugar tivesse uma luz própria. O lago era grande, mas não muito, porque eu conseguia distinguir claramente a relva, as árvores frondosas e as flores de todas as cores que cresciam do outro lado, logo depois da linha da água.
Despi-me e entrei na água morna. Deixei-me cair sem esforço. Depois nadei até ao meio do lago e deixei-me estar ali a flutuar de barriga para cima, sem pressa nenhuma. De olhos abertos podia ver o céu de mil tonalidades, próprias do entardecer. Algumas aves planavam lá em cima e eu imaginei que fossem gaivotas, felizes, sem pressa, gozando o entardecer. O silêncio que não era silêncio imperava. Os sons da água corrente chegavam até mim, muito suaves. Eu estava tranquila, feliz. Não queria estar em mais lugar nenhum. Não tinha fome, nem sede, nem frio. Não me importavam as horas. Não pensei em nada. Apenas estava ali, a sentir a água morna a acariciar-me o corpo nu, a ver as cores do céu e a sentir o cheiro da água misturado com o cheiro das flores.
Fechei os olhos e pensei que não havia passado, nem futuro. Apenas aquele presente maravilhoso. De braços estendidos, sem qualquer esforço deixei-me levar ao sabor da água…
Foi então que senti algo na minha mão. Abri um pouco os olhos e percebi que já não estava sozinha. Um homem de olhos azul celeste, que não parecia ser novo nem parecia ser velho, estava a tocar-me na mão e sorria. Não senti qualquer medo. Sorri de volta. Não dissemos nada, não era preciso. Nadamos até à margem sem esforço e sempre a olhar um para o outro. Não tive vergonha por estar nua e ele também. Na verdade nem me lembrei de tal coisa. Não era importante sequer. Na margem, outras pessoas estavam ali e sorriram-me como se me dessem as boas-vindas. Não diziam nada mas também não parecia ser preciso. Não havia nada que desejasse saber, nem nada que precisasse de perguntar. Era como se soubesse tudo. Era como se nem interessasse saber alguma coisa.
Depois o homem sem idade levou-me pela mão até aos outros. O contacto da mão dele era a serenidade. Vesti as minhas roupas sem pensar nisso e ele vestiu uma túnica larga e branca. Em redor do lago algumas fogueiras crepitavam e clareavam o céu que entretanto tinha escurecido. As estrelas brilhavam como é próprio das estrelas brilharem e a lua lá em cima, branca e pura parecia olhar apenas para mim.
Alguns dos outros dançavam danças estranhas, sozinhos ou em grupo e sorriam. Eu e o meu companheiro deitamo-nos na relva e estendidos e de braços abertos, ficamos a ver as estrelas. Num momento entre a noite e a madrugada ele tocou-me na mão e uma espécie de choque eléctrico passou pela minha pele, entrou dentro do meu corpo e foi alojar-se dentro de cada um dos meus órgãos. Foi a melhor sensação que alguma vez senti. Nunca antes tinha sentido aquela empatia, aquela alegria por conhecer alguém. Felicidade transbordante por estar perto. Felicidade apenas por estar perto e um toque suave na mão.
Depois o abraço que me deu fez nascer a manhã. A claridade. O cheiro da frescura matinal. Todos estavam por ali deitados, abraçados ou não, mas felizes.
Levantei-me e penso que ele entendeu que me queria ir embora, porque se levantou também e acompanhou-me até muito perto da falésia. Eu não queria ir embora, mas estava há demasiado tempo fora de casa… Deixei-o para trás pensado em voltar mais tarde, talvez ainda naquele dia. Senti o peso da tristeza nos pés e no meu coração. Ainda não tinha deixado a areia ainda fria da noite quando decidi voltar. Afinal, não tinha para quem voltar. Corri em desespero para a falésia mas não fui capaz de encontrar a entrada na rocha. O sol subiu no céu até ficar a pique, depois desceu e por fim desapareceu e eu não fui capaz de encontrar a entrada para aquele lugar magico…
Cabisbaixa, voltei a casa. Pela vidraça da janela vi a noite na cidade matizada de luzes e telhados. Talvez tivesse imaginado tudo aquilo… uma alucinação devido ao sol… Dentro do peito o coração pequenino de saudade daquele homem sem rosto. Sei que era o amor da minha vida, aquele que me estava reservado pelo universo. Tive-o apenas uma noite e mesmo assim deixou marcas indeléveis. Nunca mais ninguém o igualaria.
Depois, quando os dias passaram e a rotina se instalou, pensei muitas vezes naquela noite, na miragem da vida perfeita, num mundo perfeito. Era apenas isso, uma miragem, um sonho bonito que não sei sequer se o sonhei acordada ou a dormir… mas sei e não importa que tenha sido um sonho breve, que me aqueceu o coração, me encheu de alegria e me fez acreditar que a felicidade existe, por breves instantes mas plenos. E, a lição já nem é nova, mas fiquei a pensar que tenho mesmo é que aproveitar cada um desses breves instantes ao máximo.
Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fabrica de Histórias
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