Domingo, 28 de Março de 2010

Saudades

 

 

 

 

Querido,

Esta noite sofri como não me lembro nunca de ter sofrido... Esta noite foi das noites mais difíceis da minha vida, das mais negras... Querido, foste embora e eu fiquei sozinha na noite, perdida entre os fantasmas do passado. As horas sucederam-se e eu sem conciliar o sono. As saudades fizeram doer cada centímetro da minha pele, cada fio do meu cabelo... Não conseguia tirar da cabeça a imagem dos teus olhos profundamente verdes procurando os meus numa ansiedade imensa, do teu rosto inteiro e perfeito tão perto do meu. Não conseguia deixar de imaginar-te perto de mim como em tantas e tantas noites que passamos juntos, noites em que querias estar tão perto de mim quanto era humanamente possível. Doeu sentir saudades dos teus lábios pousados nos meus, desejando sofregamente mais e mais. Os teus lábios na minha pele dourada pelo sol. Ah, meu querido, é insuportável pensar que jamais sentirei i sabor da tua boca, da tua pele ligeiramente salgada depois de horas de paixão. O meu peito que não sentiu o teu toda a noite e quase sufocou. Lembrei cada detalhe dos teus dedos quando de forma suave querias sentir a minha pele do pescoço e dos ombros e delicadamente ias descendo até seres dono de todo o meu corpo. Preciso tanto que voltes para atenuar esta dor feita de uma saudade imensa. Preciso de voltar a sentir o amor imenso das noites que passamos em claro, descobrindo o corpo um do outro, entregando-nos um ao outro sem pudor mas com uma paixão desmedida… Lembras-te de cada vez que pensávamos ir dormir e nos tocávamos inocentemente? Lembras-te como isso era suficiente para nos despertar para mais uma noite de loucura e paixão? Tenho saudades, querido…repito-me bem sei, mas tenho tantas saudades…quero beijar-te, beijar-te tanto até perder a respiração….quero amar-te tanto que não sejas capaz jamais de me deixar….

Foste embora e eu fiquei só. A noite toda a pensar na tua ausência, a senti-la como uma faca espetada no peito... Na madrugada a dor física foi-se desvanecendo e a dor da alma atacou em força. Não há nada capaz de atenuar esta dor…nenhuma lembrança, o teu cheiro na minha almofada, na minha camisola que não tenho coragem de lavar…Nada, nada é capaz de apagar esta saudade…. Não consigo deixar de lembrar as tuas mãos brancas e macias enlaçadas nas minhas. A tua barba quase sempre por fazer a roçar o meu rosto, fazendo sempre com que eu solte um risinho de adolescente. Dá-te um bom ar a barba, um ar de desprendimento pela vaidade e coisas materiais que eu tanto aprecio…. Já to disse antes, penso, mas repito-to agora mais uma vez meu querido…és tão belo, és tão perfeito… não saberei agora viver sem ti… Nem nunca…

Querido, quem me virá agora dizer bom dia no ouvido? Um bom dia murmurado mas que no meu coração soava como a voz mais belamente timbrada do mundo? Quem me dirá agora palavras de amor? Quem me fará rir? Quem agora me segurará na mão em dias de tempestade? Quem me virá beijar a testa com um sorriso capaz de derreter a maior montanha de gelo do mundo? Adoro esse gesto…Não serei capaz de viver assim….Sem ti…

Ainda não me levantei da cama…Não me apetece. Estou aqui apenas a tentar que nenhuma das memórias que guardo de ti se consiga escapulir pela janela. Não a irei abrir mais, a janela. Não quero. Quero continuar a sentir as tuas mãos no meu corpo, a tua boca na minha boca. Quero continuar a sentir o teu cheiro deliciosamente inconfundível. Quero continuar a sentir-te, inteiro.

Sabes? A vida perdeu a cor. A saudade dói. E sei que nenhum dia jamais será dia porque a escuridão tomou agora conta da minha vida… como pode voltar a ser claro sem ti? Não poderá jamais… Nunca… Será noite para sempre…

Amo-te daqui até à lua e depois da lua até aqui.

Saudades de ti

M.

 

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

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Domingo, 21 de Março de 2010

Ajudar e ajudar

imagem retirada da net

 

 

 


No computador a imagem parada de uma folha de Word ainda em branco. Na secretária roída pelo bicho da madeira uma imensidão de papéis por arrumar, que faziam duvidar de eficiência do sujeito sentado na grande cadeira preta já muito gasta e rota. No cinzeiro um cigarro a consumir-se sozinho. A lâmpada no tecto iluminava mal. Apenas o suficiente para que se visse o sitio das coisas. A janela ainda aberta mostrava a cidade iluminada.

Miguel vestia uma camisola de manga curta branca que já tinha visto lixívia …. Em tempos idos. O ar estava impregnado de cheiro a tabaco, perfume barato odores corporais. Miguel tinha as mãos apertadas uma na outra atrás da nuca e olhava pensativamente para a folha em branco.

Nenhuma ideia lhe ocorria. Nada.

“Maldito consultório sentimental.” Tantas choronas a pedir conselhos idiotas com pensamento idiotas

Mais uma vez tentou imaginar uma resposta politicamente correcta para dar aquela mulher que perguntava se poderia engravidar porque beijou o namorado. Também poderia ser gozo. Miguel achava impossível que alguém pensasse isso verdadeiramente. No entanto tinha que responder, não importava nada a sua opinião. Todos os dias lhe chegavam histórias fabulosas incríveis de tão parvas que eram. Todos os dias os emails lhe entupiam a caixa de entrada e a caixa do correio estava atafulhada de cartas cobertas de caligrafia quase analfabeta. Era triste. Sentia-se frustrado. Era um trabalho que não servia para nada. Nem ajudava ninguém, gozavam com ele e ganhava uma porcaria. Estava tudo mal. Sentia-se mal.

Pegou no casaco e saiu para a rua. Precisava de arejar. Estava escuro e não conseguia encontrar nenhum café aberto para comprar cigarros. Pelo menos o ar da rua ajudou-o a clarear as ideias…

“Que trabalho estúpido o meu….”

Miguel era boa pessoa. Aceitara aquele trabalho jornalístico porque tinha contas para pagar. Mas não era de todo o que gostaria de fazer. Nunca, em tanto tempo de faculdade, lhe tinha passado pela cabeça utilizar os seus conhecimentos de escrita para aquilo. Era quando uma desonra. Chutou uma pedra e doeu-lhe o dedo grande do pé. Um palavrão saiu-lhe entre-dentes.

“Se ao menos no meio de todos estes parvalhões alguém precisasse MESMO de ajuda…”

Dias depois teve uma surpresa quando chegou ao escritório. Uma rapariga esperava-o. Não teria mais de dezoito anos mas estava muito pintada e aparentava mais. Quando abriu a boca para dizer a primeira frase percebi que era uma pessoa pura da aldeia. Aquela capa de maquilhagem e roupas extravagantes era para enganar o primeiro olhar dos mirones.

- Preciso de ajuda senhor…

Miguel ficou sem saber o que dizer. Era a primeira vez que alguém o abordava. Era a primeira vez que tinha frente a frente alguém a quem respondera no consultório sentimental. Olhava para a rapariga e não dizia anda. Estava mudo.

- Preciso de ajuda….disse-me que deveria dizer ao pai do meu filho e agora ele escorraçou-me de casa e disse que nunca mais me queria ver…

As lágrimas corriam-lhe pela cara e Miguel teve uma vontade imensa de a abraçar, de a confortar. No entanto não se mexeu. Não fazia a mínima ideia de quem fosse a rapariga. Mesmo!

- Agora não tenho para onde ir, nem o que comer. Não sei o que fazer. Ajude-me senhor….eu confiei em si…

Miguel sentou-se e acendeu um cigarro. A rapariga mantinha-se de pé. Miguel olhou-a mais uma vez e fez sinal para que se sentasse na cadeira em frente à sua.

- Diga-me em primeiro lugar como se chama menina…

Uma expressão de surpresa atravessou-lhe o rosto. Miguel percebeu imediatamente que ela não estava à espera que ele não se lembrasse dela. Era ainda mais inocente do que tinha pensado.

- Margarida. O meu nome é margarida. Escrevi-lhe em tempos quando descobri que estava grávida. Não tenho pais, morreram. Também não tenho amigos porque vim da terra e não conheci ninguém ainda. Tenho estado quase escondida em casa… Quando lhe escrevi, imaginei que me fosse ajudar. Em vez disso correu tudo ao contrário.

A jovem mulher escondeu o rosto nas mãos e soluçou alto. Miguel não sabia como fazer, não sabia o que pensar sequer…

- Em que posso ajudá-la? Eu também não sei muito bem como fazer….diga-me o que posso fazer…

- Não sei…

Miguel olhou-a mais uma vez e sentiu uma pena infinita da rapariga. Ela estava sozinha, grávida, sem dinheiro, sem família. Desconfiava que se não a ajudasse agora ela se perderia no mundo e quem sabe que futuro seria o dela. Negro, disso não duvidava. Mas não sabia como ajudar… sentia-se impotente.

Levou -a para sua casa e deu-lhe de jantar. Fez a cama de lavado e cedeu-lha. Quando ela adormeceu ele ficou a olha-la durante muito tempo, depois deitou-se no sofá e passou a noite em claro sem conseguir conciliar o sono.

De manhã aconselhou-a a abortar. A esquecer o homem que a abandonara e a recomeçar tudo de novo. Margarida bateu a porta a chorar e Miguel não conseguiu deixar de a ouvir durante muito tempo na sua cabeça. Já tinham passado alguns minutos, ele não sabia bem quantos, quando se arrependeu do conselho. Tinha sido estúpido, muito estúpido. Miguel começou a correr sem parar, andou por muitas ruas, bateu a portas, perguntou a muita gente se a tinham visto e estava quase a entrar em desespero quando a viu. Margarida estava sentada no paredão da praia. Olhava o mar com uma expressão vaga de desalento.

- Margarida…desculpa….não faças o aborto. Não o faças…

Ela olhou-o como uma expressão interrogativa. Estava confusa e ele estava com um aspecto estranho. O suor corria-lhe pelo rosto cansado e o cabelo estava desgrenhado e as roupas coladas ao corpo.

- Margarida….vamos para minha casa. Podes lá ficar algum tempo. Vou ajudar-te. Tratas de ti e do bebé. Vais conseguir resolver a tua vida mesmo sem um pai para essa criança. Verás que sim. Vou ajudar-te no que puder. Não te vou desiludir.

Miguel não a desiludiu. Ajudou-a a encontrar uma casa de acolhimento, um trabalho. Ajudou-a com a amizade, com o carinho e a dedicação de amigo.

Depois, Miguel não conseguiu voltar a escrever para aquele absurdo consultório sentimental. Aproveitou os seus conhecimentos jornalísticos para escrever pequenos artigos para revistas sobre a maternidade, a parentalidade, as crianças órfãs, o aborto e muitos outros temas pertinentes, tentando sempre ajudar as pessoas a compreender e a encontrar a melhor forma de agir nos casos como o da margarida.

Miguel veste uma camisa branca, tão branca que fere a vista. Na sua frente uma secretária desarrumada e uma folha de Word em branco espera por ele.  Pela janela aberta o sol entra morno acompanhado do riso fácil de duas crianças. Uma mulher pede silêncio para não importunar o trabalho do pai. Miguel sabe que ajudou muitas mulheres e homens desde aquela noite em que conheceu a Margarida e isso fá-lo sentir felicidade pura. Miguel ouve as crianças e sente uma alegria monstruosa. Um sorriso abre-se-lhe no rosto. Já sabe o que vai escrever!

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

 

 

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Domingo, 14 de Março de 2010

O elogio das mulheres

 

imagem retirada da net

 

 

 

Simão era um homem que tinha crescido no meio dos homens. Simão era um homem que tinha aprendido que os homens é que devem mandar porque elas não tinham sido feitas para pensar. Simão era um homem que tinha aprendido que ser mulher é ser inferior. Simão era um homem que não conhecia as mulheres.

Depois, um dia, embarcou numa viagem sem retorno. Uma viagem de conhecimento, de revelações. Simão perdeu o pai com quem sempre vivera e com quem tinha sido sempre educado e vagueou sozinho pelo mundo. Ele era um homem muito observador e inteligente e por isso muito rapidamente absorveu muita informação. Simão estava estupefacto com as coisas que via. Simão queria entender.

Viu então muitas mulheres, viu-as verdadeiramente com os olhos ansiosos por aprender. Viu mulheres a trabalhar no campo, de mãos calejadas e costas dobradas. Viu mulheres nos hospitais salvando pessoas das garras da morte. Também viu mulheres salvando crianças das mãos de pedófilos e assassinos. Vou mulheres polícias e viu mulheres nas ruas vendendo o seu corpo para sustentar pais doentes e filhos pequenos. Viu mulheres sozinhas a cuidar das casas e dos filhos. Também viu mulheres que mesmo na adversidade não deixavam nunca de sorrir. Também viu mulheres enfermeiras que não saiam da cabeceira da cama dos doentes no último sopro de vida. Viu-as nas escolas a ensinar com uma paciência infinita, viu-as no laboratórios a descobrirem curas e vacinas para doenças raras. Viu mulheres que comandavam tropas e governavam países. Viu tantas e tantas e tantas mulheres que nunca deixavam de sorrir mesmo na adversidade dos dias mais difíceis. Viu mulheres no momento do parto. Viu mulheres a fazer um mimo na cara dos filhos. Viu mulheres na guerra e viu mulheres a amamentar. Viu mulheres que nunca desistiam por mais difícil que fosse o caminho a percorrer.

Tudo isto o alegrou. Tudo isto o espantou. Alem de tudo, espantou-o a capacidade maravilhosa de nunca deixarem de serem meigas e pensarem nos seus filhos ou mesmo nos seus companheiros homens. Ganhou uma profunda admiração pelas mulheres.

Um dia descobriu que se festejava o dia da mulher. Descobriu que nesse dia se compravam presentes e se faziam jantares. Que nesse dia se falava muito nas mulheres e que nos outros dias eram maltratadas e ignoradas. Nos outros dias os maridos gritavam-lhes e exigiam-lhe coisas absurdas. Nos outros dias eram apenas aqueles quem se esperava o trabalho, a meiguice, os sorrisos, o nunca barafustar ou dizer não. Nos outros dias dava-se como adquirido que a mulher não precisava de sorrisos ou obrigadas.

Simão não percebeu e recolheu-se um pouco. Precisava de pensar. Precisava de perceber no porque destas atitudes. Não era preciso haver um dia dedicado às mulheres porque o deveram ser todos. Não deveria haver um dia dedicado às mulheres porque não deveria se necessário lembrar todo o trabalho e que exercem todo o esforço que fazem. Deveria ser um dado adquirido que as coisas que as mulheres fazem são coisas normais mas que merecem reconhecimento e gratidão na mesma pela boa vontade com que são feitas. E isto não deveria ser por ser mulher ou homem mas por ser intrínseco a ser-se humano. Quem da tanto de si deve ser reconhecido e agraciado por isso. Assim, era como se dessem uma migalha de pão a um esfomeado. Era como se dissessem às mulheres: toma lá este dia e contenta-te. No resto dos dias nem vamos notar que existes. Simão não percebeu e doeu-lhe na alma.

Meteu então os pés ao caminho numa viagem longa de reflexão. Precisava de pensar em tudo isto. Percorreu muitos quilómetros. Conheceu muitas culturas. Dormiu com muitas mulheres. Amou-as todas. Precisava de perceber e mesmo assim não conseguiu. Quando voltou fechou-se em casa a escrever. Depois de muitos dias, muitas semanas, meses e anos, finalmente terminou, tudo o que precisava de dizer sobre a beleza exterior e interior das mulheres estava naquele livro. Era o elogio das mulheres. Simão estava velho. As barbas longas estavam brancas e o cabelo durante anos sem cortar caia-lhe pelas costas. Pegou no manuscrito debaixo do braço e deixou-o ficar nas mãos de uma mulher jovem e muita bela que por ele passou. Depois voltou asa costas e nunca mais ninguém ouviu falar dele.

O livro, esse, foi publicado e tornou-se a maior homenagem de todos os tempos às mulheres de todos os tempos, idade e classes sociais. Como não há autor, os direitos das vendas revertem a favor de casas para ajudar mulheres cujos homens costumam maltratar. Também se usa uma parte do dinheiro para descobrir a cura para doenças que são apenas das mulheres.

Muita gente lê o livro e, creio, não há ninguém que fique indiferente. Nem mulheres e nem homens. Creio que foi cumprido o objectivo de Simão, pelo menos um bocadinho em cada homem que o lê e muda a sua maneira de ver as mulheres. Agora só nos resta esperar que a humanidade se torne toda tão sábia como o Simão, lendo ou não a sua obra. Importa é que dentro do coração dos homens o mundo comece a ser mais justo.

 

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

 

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Domingo, 7 de Março de 2010

O espelho

 Ele ia por ali pelo corredor coberto de retratos de gente famosa e espelhos, sem pressa aparente. Pensava em coisas sem nexo e nem reparava no que via. No entanto, ali entre o retrato do bisavô que tinha sido governador e o da sua tetravó marquesa, algo lhe chamou a atenção. Voltou para trás e postou-se em frente ao espelho. Abriu a boca como se fosse falar mas fechou-a novamente sem sequer ter emitido um único som. Algo estava ali muito errado. O espelho devolvia-lhe uma imagem errada, absolutamente errada. Em vez de ver o seu rosto, via a parte de trás de si próprio. Como era aquilo possível. Ainda pensou que estava a ter alucinações, que algo que comera lhe tinha feito mal. Beliscou-se e não conseguiu evitar um gritinho de dor. Não estava a ver mal. Efectivamente o espelho devolvia-lhe a o reflexo das suas costas. Mas como era isso possível se estava de frente? Olhou para trás de si, tentando perceber se haveria ali algum truque. Mas não, nada. Tudo tranquilo, igual a todos os dias. Os retratos cobertos de um pó fino, as paredes cobertas de papel de parede amarelecido pelo tempo. Os espelhos com as molduras douradas já de outro século estavam a ficar sem prata por trás e alguns até já nem conseguiam devolver a imagem como deveria ser. Mesmo assim nada fora do normal. Olhou-se ao espelho novamente e confirmou o que já tinha visto antes: a sua nuca, o cabelo grisalho, as costas estreitas… sentiu medo por não saber explicar o que via. Sentiu medo do desconhecido.

Um livro. Estava ali um livro pousado no móvel por baixo do espelho. Não o reconheceu. Talvez estivesse ali a resposta… abriu-o a medo e não entendeu nada do que lá estava escrito. Estava escrito em caracteres estranhos que nunca tinha visto, podia ser uma linguagem antiga, não sabia. Mesmo que ali estivesse a resposta não servia de nada porque não conseguia ler aquilo…. Fitou-se mais uma vez à espera de ver um rosto desanimado mas só conseguiu ver-se de costas. Saiu dali a correr o mais que pode. Precisava de ar. Ar fresco e puro.

Percorreu o jardim onde dezenas de magnólias raras mostravam ao mundo a sua beleza. Enquanto isso respirava fundo para tentar perceber se tudo não passara de uma alucinação. Talvez tivesse sido apenas isso, uma alucinação. Estava cansado, a mente talvez lhe estivesse a pregar partidas. Mais calmo voltou para dentro. Depois de um momento de hesitação voltou ao espelho e forçou-se a olhar novamente. Um frémito de desilusão percorreu todo o seu corpo. Lá estava a mesma imagem reflectida: as suas costas. As pernas tornaram-se mais fracas e ele encostou-se a uma parede e fechou os olhos. Depois, recorrendo a uma grande força interior, voltou a pegar no livro. Sentou-se no chão perto do espelho e abriu o livro. Depois de ver com mais atenção percebeu que aquilo não era uma linguagem estranha mas sim um código. Estava ali uma mensagem encriptada, tinha agora a certeza. Era só tentar perceber o que era. Durante duas horas esteve ali sentado, a tentar decifrar a mensagem. Já lhe doíam as costas e a noite caíra por completo. Lembrou-se que tinha que comer mas não deixou o livro nem por um momento. Comeu com ele e depois foi para o quarto com ele. Deitou-se mas não conseguiu dormir. E dois dias depois ainda não tinha dormido. Estava obcecado por entender. Estava febril. Por fim conseguiu perceber como estava escondido o texto e num instante toda a informação se tornou clara e penetrou na sua mente.

Em meados do século XVIII um homem que vivia numa terra longínqua fez um espelho. Dizia-se que esse homem tinha poderes sobre todas as coisas da natureza: as vivas e as mortas. E esse homem de nome Galic, tinha em tempos sofrido horrores por perder a sua jovem filha. Uma filha que era muito bela mas muito vaidosa e que se perdeu para sempre nas trevas da loucura por tanto se admirar e adorar ao espelho e por isso num dia de desespero ele lançou uma maldição em todos os espelhos que a sua ira alcançou. Quem se olhasse num desses espelhos não veria nunca os seus próprios olhos, seu próprio rosto, a sua própria beleza, para que a vaidade jamais pudesse cegar as suas almas corruptíveis. Depois, com o passar dos anos os espelhos foram-se perdendo pela terra e o mundo esqueceu esta maldição.

Ele compreendeu então que o seu coração estava tomado pela vaidade e não se tinha dado conta disso. Reviu os últimos dias da sua vida, os últimos meses e percebeu que se tinha transformado numa pessoa diferente, pior e que isto tinha sido uma chamada de atenção. Tinha que mudar. Precisava de mudar. De ora em diante aquele espelho seria o seu vigilante, seu guia que não deixaria desviar-se do bom caminho…


texto de ficção escrito para a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira

 

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publicado por magnolia às 22:40
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