Domingo, 18 de Abril de 2010

O Sexto Sentido

 

 

 

Ouvia-se perfeitamente o som alto da música que saia do carro. De resto o silêncio era absoluto e nem sequer os dois ocupantes do carro virado ao contrário davam sinais de vida. As rodas tinham parado de rodar no ar. A porta estava aberta e dela saia um braço inerte. Do outro lado um rosto ensanguentado estava colado ao vidro fechado que não partira. O acidente tinha sido aparatoso e fatal. Havia óleo na estrada e o condutor não tinha conseguido segurar o carro na curva. O resultado tinha sido uma violenta queda pela ravina de cerca de vinte metros. Primeiro ouviu-se os gritos dos dois jovens ocupantes do carro, depois o primeiro embate nas rochas, depois outro e por fim a queda final no fundo da ravina. Depois, silêncio.

 

****

 

Ela estava na cozinha entretida a cortar os legumes para a sopa. Na televisão um absurdo programa de entretenimento debitava gritinhos estridentes de alguma aborrecida apresentadora da moda, mas ela não estava a prestar atenção. Creio mesmo que trauteava uma das musiquinhas de momento que tinha vindo a ouvir na rádio local. Estava cansada, ma agora aliviada. Finalmente estava livre de um trabalho que a oprimia. Tinha sido capaz de dizer basta. E já deveria ter sido capaz disso há muito tempo, mas o seu feitio cândido nunca lhe tinha dado coragem para tal. Depois disso pegara no carro com a intenção de voltar para casa. Conduziu até perto do inicio da montanha que atravessava todos os dias e parou.

“ E se hoje não fosse por aqui? E se hoje fosse pela beira-mar?”

Todos os dias durante dez anos tinha feito aquela estrada para voltar para casa depois do trabalho. Conhecia-a como a palma da sua mão. Ir pela beira-mar era muito mais longe.

“Não. Tenho tanto que fazer em casa e o carro tem pouca gasolina. Vou pelo sítio do costume.”

Mas apetecia-lhe tanto ver o mar. Imaginou a estrada quilómetro a quilometro ate casa pela montanha e torceu o nariz. Não queria ir por ali hoje. Não queria. Por muito que a razão lhe dissesse para ir pelo sitio de sempre a verdade é que algo lhe dizia para não ir.

“Micas Maria, ganha juízo! Que coisa. Que vais agora fazer pela beira-mar? E logo hoje que ficas sem emprego e vai ser preciso poupar muito!”

Pôs o carro a trabalhar e começou a subir a estrada. O arvoredo deixava passar um ou outro raio de sol, mas em breve iria estar escuro porque já passava das seis da tarde. Um quilómetro à frente fez inversão de marcha e voltou para trás. Sentiu-se aliviada por ter tomado aquela decisão e nem percebeu porquê. Riu-se de si própria e achou-se uma perfeita idiota.

“Estou a ficar tonta com a idade é o que é!”

Depois em casa, tirou os sapatos calmamente, verificou a caixa de emails que mais uma vez estava cheia de porcaria e spam. Depois pôs o avental e dispôs-se a fazer o jantar. Teria visitas nessa noite. Um casal de amigos viria jantar com ela. Ligou a televisão para lhe fazer companhia e nem se importou qual era o programa.

A água já fervia na panela quando ouviu o locutor do jornal falar numa notícia de última da hora. Olhou para a televisão e algo lhe chamou a atenção. Pegou no pano da louça e ainda a limpar as mãos encostou-se à mesa da cozinha, atenta.

“… Temos um repórter no local que nos vai dar agora conta de como tudo se passou. Posso no entanto adiantar que os dois ocupantes da viatura acidentada faleceram a caminho do hospital.”

A imagem mostrava uma parte da estrada por onde tinha passado todos os dias nos últimos dez anos. Ela precisou de se sentar para não cair enquanto ouvia descrever o acidente e a hora a que se deu. Uma ideia passava-lhe pela cabeça de forma brutal. Ela deveria ter passado ali. Ela deveria ter passado ali naquela hora. Podia ter sido ela. Podia ter sido ela a cair naquela ravina. A ideia fez com que todo o seu corpo perdesse as forças. Se não estivesse sentada teria caído. Lembrou-se de não saber a razão de não ter querido ir por ali. Algo a tinha feito voltar para trás quando já estava a caminho. O que teria sido? Não sabia. Intuição? O sexto sentido de que todos falam? Não sabia. Sabia que aquela vontade repentina de ir pela beira-mar a tinha salvado de uma possível morte. Sabia que algo a impelira a voltar. E isso tinha feito toda a diferença. Por muito que pensasse não conseguia entender, mas não importava. Não importava. Importava que não tinha ido por lá. Tinha pena do casal que tivera a má sorte de passar ali aquela hora, mas não podia deixar de sentir um grande alívio por não ter sido ela. De uma coisa ela estava certa: a próxima vez que algo dentro de si lhe dissesse não vás, ela não iria.

 

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

 

 

 

sinto-me: ...
publicado por magnolia às 23:27
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Domingo, 11 de Abril de 2010

Recomeçar do nada

 

 

 

 

 

 

Não foi fácil. Não foi mesmo nada fácil. As lágrimas corriam-me ligeiras pela cara sem que as conseguisse deter. No peito o aperto de uma tenaz. Mesmo assim tive que o dizer. Era preciso escapar daquela vida de cheiro fétido e começar tudo de novo. Era preciso ganhar coragem para um novo recomeço onde o sol fosse capaz de brilhar. Estava farta daquela vida de medo e angústia. Os últimos anos tinham sido passados a sofrer por causa daquele homem. Tudo tinha começado alguns dias depois do casamento. O homem por quem me apaixonei era um homem de má índole. De inicio eu não queria acreditar que me tinha enganado tão redondamente sobre o homem que escolhi para marido. Eu amava-o muito e sofri como nunca esperei sofrer no dia em que me bateu pela primeira vez. Foi como se me tivesse arrancado o coração do peito a sangue frio. Foi como se me tivessem arrancado a pele, centímetro a centímetro sem qualquer piedade. Depois atirou as culpas para os dias difíceis e para o álcool a mais e passou. Mas em breve a historia se repetiria. E repetiu-se muitas e muitas vezes. E nem eram precisas desculpas. Eu vivia aterrorizada e não sabia o que fazer. Queria libertar-me mas ao mesmo tempo não queria. Tinha medo dele e de não saber viver uma vida sozinha. Nunca tinha vivido sozinha. Tinha saído de casa dos meus pais menina directamente para a casa do meu marido. Durante o casamento ele nunca me tinha deixado tomar conta da minha própria vida. Hoje sei que ele o fazia para não me dar armas para lutar contra ele. Não queria que eu soubesse ser independente. Depois, um dia, comecei a pensar que talvez eu fosse capaz de viver sozinha, de tomar conta da minha própria vida. Pensei muito e ganhei coragem. Só faltava dizer-lhe. Só faltava encarar aquele rosto maldoso e dizer-lhe que queria o divórcio. Tive esperanças que talvez fosse possível divorciar-me e recomeçar uma vida ali, perto dos meus pais. Mas ele não aceitou bem o facto tal como eu já previa. Esbracejou como um afogado, depois vociferou como um condenado e por fim, ao ver-se encurralado pela situação e sem conseguir obrigar-me a mudar de ideias fez de mim um saco de pancada, mais uma vez. Foi então que admiti que não haveria qualquer hipótese de começar uma nova vida ali, perto daquele ex marido agressivo e possessivo. Teria que recomeçar uma vida do zero, longe, o mais longe onde fosse possível chegar.

De madrugada fiz um saco com roupa e alguns objectos pessoais. Depois olhei em volta para a casa que eu construi e decorei com as minhas próprias mãos e despedi-me. Não levava saudades no peito. Tinha passado ali, entre aquelas paredes, algumas das piores horas da minha vida.

Já na rua respirei fundo. Certifiquei-me que não era seguida e avancei calmamente para o carro.   Depois o barulho do motor do carro foi uma libertação. Estava pronta para recomeçar.

Depois, quando já o sol ia alto, comecei a pensar no que fazer. Não tinha nada planeado e era preciso um plano. Não um plano complicado, nada a longo prazo, apenas um esboço do que iria começar por fazer numa vida completamente nova. Era preciso saber por onde começar.

Continuei a fazer quilómetros até me sentir longe o suficiente, segura o suficiente, serena o suficiente. Precisava de reaprender a capacidade de respirar normalmente. Depois o pôr-do-sol estava tão bonito que o segui. Sai da auto-estrada e conduzi por estradas secundárias até avistar o mar. Uma pequena vila piscatória aparecia ao meu lado direito emoldurada pelo mar e pelo céu ardente de um fim de tarde de verão. Tudo estava perfeitamente tranquilo. Sai do carro e caminhei até à areia. Descalcei-me e fui molhar os pés cansados. A água fria provocou-me um arrepio na pele mas soube imensamente bem. Já não estava quase ninguém na praia. O sol estava quase a chegar à linha do horizonte e em breve desapareceria. O céu parecia uma pintura e no ar ainda podia sentir o cheiro a bronzeador. Senti-me em paz pela primeira vez em muitos anos. Senti-me renovada. Sabia que tinha um longo e difícil caminho pela frente. Sabia que não tinha dinheiro nem emprego. Sabia que seria preciso muita força para levar avante aquele recomeço sem sucumbir. Mas tive esperança e acreditei que seria possível. Pela primeira vez respirei profundamente e sorri. Desejei viver. Desejei ser feliz. E seria ali. Tinha a certeza que seria ali. Já me conseguia imaginar a viver por ali numa pequena casa caiada de branco que teria uma janela com cortinas brancas e que quando uma brisa as fizesse voar elas me deixaram ver um mar azul e imenso. Sim, tinha a certeza disso. Seria feliz ali.

 

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

 

 

sinto-me: pensativa
publicado por magnolia às 23:49
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Domingo, 4 de Abril de 2010

A esplendorosa flor amarela

 

 

A cidade era caos. Apenas caos e nada mais. Os prédios destruídos pela guerra estavam ali silenciosos, lembrando aos que ainda restavam os dias de dor. Dias que ainda pareciam recentes nas suas memorias. Todos eles, sem excepção, estavam ainda cobertos de fuligem do fogo que os havia consumido. As poucas paredes ainda de pé ameaçavam ruir ao mínimo sopro de vento. Nas janelas nem um único vidro tinha sobrado inteiro depois daqueles dias. Tinham sido tempos de destruição e terror. Eles tinham avançado pela cidade trajados em tons de verde, montados nas suas máquinas maquiavélicas feitas de aço e tinham destruído tudo. As suas armas haviam conseguido dizimar logo no primeiro dia metade de toda a população da cidade. Mais tarde muitos mais os tinham seguido, abatidos pela doença e pela fome. Durante dias eles permaneceram na cidade fazendo um barulho infernal com as metralhadoras, as bazucas, os tanques de guerra, as vozes de comando, zangadas com o mundo e com eles próprios. Tinham saqueado as lojas de conveniência, matado quem se atrevia a fazer-lhes frente. Tinham destruído as árvores, espezinhado as flores dos canteiros. Tinham morto os animais de estimação, os gatos vadios, os vira-latas. Tinham esventrado selvaticamente os sem-abrigo, os pedintes de rua, os cegos e os estropiados. Tinham violado sem pudor nenhum as mulheres de todas as idades. E, depois de tudo isto, nem mesmo as crianças conseguiram escapar da malvadez dos homens armados, porque eles encontravam satisfação em vê-los perecer indefesos nas suas mãos.

Depois, sem aviso, e tal como tinham chegado partiram. Nenhum aviso, nenhuma palavra. Atrás, deixaram o caos absoluto.

Aos poucos o cheiro da putrefacção invadiu a cidade inteira. O lixo estava por todo o lado nas ruas levado pelo vento agreste que se fazia sentir. A doença que apodrecia os corpos cheirava ainda pior. Alguns tinham sido enterrados em jardins destruídos e pequenos quintais dizimados. Depois já não havia quem enterrasse os que iam morrendo. E esses, os últimos, ficavam por ali estendidos nos passeios e nas ruas, encostados aos muros ou postes de iluminação tombados onde exalavam o ultimo suspiro. Seria essa a sua última morada. Depois, dos corpos em decomposição começava a sair o cheiro nauseabundo da morte.

Para os que ainda restavam já não havia qualquer esperança. Sabiam o que os esperava. As crianças vagueavam sujas e tristes por todo o lado, apanhando do chão lixo para enganar o estômago vazio. Os adultos deixaram-se abater pelo desânimo e não se mexiam e deixavam-se estar caídos por todo o lado, derrotados. O silêncio era absoluto, apenas aligeirado pelo soprar do vento que por vezes soprava mais forte e zunia nas ruas desertas.

Muito tempo passou e nenhuma esperança morava ali. Depois, um dia, o sol despertou e inundou as ruínas de uma cor suave. Alguns meninos famintos olharam o céu e não compreenderam. Já não se lembravam do que era o sol. Tentaram levantar-se e não conseguiram mas olharam em volta tentado compreender. Parecia tudo igual com uma ligeira diferença de cor. Depois uma das mulheres mais jovens deu um grito e arrastou-se alguns metros. Tinha visto uma coisa que a tinha feito sorrir. A custo arrancou algo do chão e trouxe nas suas mãos encardidas para os outros verem. Era uma flor amarela que tinha conseguido furar aquele solo destruído e conspurcado pela violência dos homens. Todos tentaram sorrir. Custou muito de principio porque já não o faziam há muito tempo e os cantos da boca não queriam subir. Por fim conseguiram. A flor amarela ali estava na mão daquela rapariga. Todos se aproximaram da pequena flor amarela, tão simples, tão singela, mas absolutamente esplendorosa para eles. Era sinal de vida. Ainda havia vida a crescer naquele lugar por muito estranho que parecesse. Olharam uns para os outros e pensaram todos ao mesmo tempo na palavra ESPERANÇA. Talvez ainda fosse possível…talvez… Num momento todos se ergueram e foram à procura de mais flores amarelas. Com as unhas afastaram as folhas velhas e os ramos partidos e esgaravataram na terra à procura de rebentos verdes, de sementes, de qualquer coisas que revelasse vida. E encontraram. Encontraram vida! Encontraram vida e isso significava que era possível voltarem ser o que eram antes: humanos. Não foi preciso dizerem nada, cada um sabia o que tinha a fazer. Tinham apenas que o fazer depressa. Era urgente a vida. Demasiado urgente. Podiam não ter muito tempo mais.

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

 

 

sinto-me: pensativa
publicado por magnolia às 19:53
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