imagem retirada da net
Sentada na minha velha poltrana ouço a música que me derrete a alma. Faz parte de um dos filmes das minha vida. Canta-a Josh Groban e chama-se “Cinema Paradiso”. Como sempre que ouço esta música uma lágrima teimosa desce pela minha face e molha-me os lábios envelhecidos. É dezembro e está frio. A lareira acesa emana um calor convidativo e por isso deixo-me estar por ali, ouvindo música e lendo os meus livros tão velhinhos como eu. O josh continua a cantar e eu sinto o meu coração tão apertadinho como se alguém muito forte e musculado me desse um abraço. Pela cortina entreaberta vejo nevar.
Levanto-me a custo, doiem-me as costas e já não consigo endireitar-me. A velhice chegou e não mais arredou pé. Sinto-a em cada osso, em cada articulação, em cada ruga e até na minha memória, antes tão fresca e agora tão esquiva. Afasto a cortina e lá fora neva, já está tudo branquinho e em breve o limpa-neves terá que passar por aqui.
É Dezembro e neva. E sempre que é Dezembro e neva eu não consigo deixar de reviver todos os momentos passados naquele Natal fantástico em que tudo aconteceu. Fecho os olhos e estou lá, com vinte anos e um sorriso nos lábios, força nos braços e muita vontade de mudar o mundo. E foi isso mesmo que fizemos naquele Natal, mudamos um bocadinho o mundo.
Estava frio, muito perto dos zero graus e tinha nevado imenso na noite anterior. Estavamos todos na brincadeira na neve atirando bolas uns aos outros quando atingimos sem querer alguém que ia a passar. A pessoa cambaleou e caiu. Todos nós ficamos a espera de ver a pessoa levantar-se e talvez ralhar connosco, mas nada acontecia, a pessoa continuava ali, caida no chão. Aproximamo-nos e vimos que era uma mulher de idade indefinida, coberta de trapos e cheia de frio. Ajudámo-la a levantar-se e vimos que tremia. Estava sem força para se levantar. Pedimos descupa e a pobre senhora em vez de ficar zangada pediu desculpa e voltou-nos as costas para ir embora. Depois de dois passos voltou a cair. Levamo-la para casa dos meus pais e juntamo-nos à lareira a beber um chá bem quente. A mulher não conseguia dizer nada, estava calada e continuava a tremer. Foi só uma hora depois que recuperou um pouco as cores e foi capaz de dizer algumas palavras. Ficámos então a saber que não tinha familia, nem casa, nem emprego, vivia perto da ponte, longe dos olhares da sociedade juntamente com outros sem-abrigo na mesma situação. O meu coração parecia saltar do peito ao ouvir aquela senhora a falar. Disse-nos que tinha sessenta anos e ficara sem trabalho perto dos cinquenta e que depois já ninguém a quisera empregar e o unico filho vivia longe e não queria saber dela. Por isso quando as prestações da casa começaram a ficar muito atrasadas puseram-na na rua e ela passara uma noite na rua, chorando, duas noites na rua, chorando, três noites na rua, chorando e que até hoje era rara a noite em que não tivesse chorado. Depois disse que no sitio onde costumava dormir viviam lá mais vinte pessoas nas mesmas condições. Contou-nos também que tinham acabado de perder um amigo e que não os tinham deixando vê-lo. A ambulância levara o homem sem nome de quase oitenta anos e nunca mais o viram. Nesta altura ela chorava e eu também. Estavamos todos calados, lembrando as nossas casas confortáveis e as nossas familias carinhosas. A mulher agradeceu muito e foi embora. E nós ficamos quietos, sem saber o que dizer áquela mulher, não a poderiamos deixar ficar, não tinhamos dinheiro, nem trabalho para lhe oferecer. Foi um momento de grande tristeza, já ninguem quis brincar mais na neve, nem sequer sair. Estavamos todos deprimidos com o que tinhamos ouvido. Depois nessa noite não fui capaz de dormir, vendo na minha mente as pessoas a dormirem debaixo da neve, tremendo de frio e cheias de fome. Já via a senhora a ser levada pela ambulância para a morgue e ninguém para a reclamar.
No dia seguinte levantei-me cheia de olheiras, mas determinada a ajudar aquelas pessoas. Falei com os meus pais e tive o apoio deles na minha ideia, reuni com os meus amigos e todos aceitaram, por isso metemos mãos à obra, obra que haveria de ajudar aquelas vinte pessoas, não só naquele Natal, mas para o resto dos seus dias.
Andamos pela cidade inteira, pedimos comida, cobertores, pedimos artigos de higiene, pedimos a cada familia que deixasse uma daquelas pessoas tomar banho e comer uma refeição decente uma vez por semana. Muitas pessoas nos fecharam a porta na cara perante tal pedido, mas muitas pessoas sentiram que era uma obrigação ajudar quem necessitava. No resto dos dias os nossos novos amigos tinham agora cobertores para fazer face ao frio. Também fomos aos grande hipermercados e pedimos uma ou duas tendas grandes para não ficarem debaixo da neve que insistia em cair todas as noites nesse ano. Estas foram as nossas primeiras e mais simples acções. Depois vieram as mais complicadas. Obrigamos, esta é mesmo a palavra certa, obrigamos o presidente da Câmara a receber-nos, queriamos que visse a possibilidade de arranjar casas para estas pessoas. Para algumas seria fácil, como já tinham alguma idade, podiam ser acolhidas num lar para idosos. Se uma destas pessoas fosse lá sozinha, não seria possivel porque não tinham ganhos, mas nesta altura já tinhamos cobertura mediática, em grande parte devido aos nossos conhecimentos no meio jornalistico, e o presidente não pôde deixar de ajudar para não perder votos nas próximas eleições. Para as mais novas que ainda não tinham idade para a reforma, foi-nos prometida uma solução, mas que tardou em chegar, por isso fomos nós proprios à procura dela. Pensamos que nada melhor para estas pessoas do que serem úteis de alguma forma, por isso levámos estas pessoas a fazerem pequenos trabalhos para outras pessoas como limpar a neve, cortar sebes, limpar terraços e pátios, carregar compras. Sempre sob o nosso olhar atento para que as pessoas não se sentissem com coragem para recusar ajudar. Aos poucos todos se foram habituando à presença destas pessoas. Pouco depois algumas delas que viviam mais confortavelmente arranjaram-lhes trabalhos simples, como limpar lojas e cafés ou lavar louça em restaurantes. Nesta altura já era do conhecimento geral esta campanha para ajudar os sem-abrigo da ponte. O presidente finalmente arranjou uma casa, que embora não muito grande, poderia abrigar todos do frio e da neve. Uma parte da renda pagava a Câmara e a outra pagavam eles mesmos com o dinheiro que iam fazendo nos seus novos trabalhos. A casa ficou pronta a habitar no dia 23 de dezembro e no dia 24 de dezembro foi lá que fizemos a consoada. Cada um de nós levou comida e um presente, além da familia. A casa era demasiado pequena para tanta gente, mas na mesa, nos sofás, no chão, toda a gente arranjou um lugarzinho para comer. O calor não faltou e o bolo-rei tambem não. Mas o que mais se viu naquela noite foram sorrisos. Lágrimas também, mas de felicidade. Depois disso, todos os anos nos encontravamos para celebrar esta data. Passamos todos a ser uma grande familia e de cada vez que perdiamos uma destas pessoas perdiamos um ente muito querido. E cada uma delas recebeu um funeral digno, simples mas digno a que nenhum dos restantes faltou.
Hoje resto eu e mais dois deste grupo maravilhoso de amigos. Um deles é meu marido. O outro é o nosso amigo mais querido e há-de vir aí pelo Natal para consoar connosco. Olho neste momento pela janela e peço a Deus que olhe pelos mais desafortunados, que dê coragem e força a quem melhor pode para mudar o mundo. Que não desampare os pobres, os solitários, as crianças e os velhos. Todos eles precisam de uma mão amiga e não há época melhor do que o Natal para fazer uma boa acção.
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