imagem retirada da net
Aquele rosto tinha algo de especial, pensei eu na primeira vez que o vi. Era um rosto igual a tantos outros e no entanto tão diferente. Sulcado de rugas ficava ali sério e sereno à janela, sem nunca faltar, todos os dias dos dias que ainda lhe restavam para viver. Sim, era um rosto muito velho, de olhos pequeninos de tanto focar o horizonte. Olhando aquele rosto a minha imaginação voava e era impossível não o fazer, tanto que despertava a minha curiosidade e ainda mais importante, despertava as minhas emoções. Cada dia que passava sentia ainda mais apego aquele rosto sem nome que via todas as manhãs e tarde dos últimos meses.
Já não sei bem quando tudo isto começou, lembro-me apenas que era inverno e eu olhei a janela que continha um rosto e pensei que aquela senhora tão velhinha estava com saudade da sua casa na sua aldeia natal. Depois desse dia, todos os dias, olhava para cima em direcção aquela janela e lá estava ela, sempre séria, mas sempre tranquila. Não me lembro nunca de ter visto um sorriso naquele rosto.
As coisas que imaginei a pensar naquele rosto, cada ruga teve uma história, cada cabelo branco, outra. Imaginava as vezes que tinha chorado com saudades de um marido ausente na guerra. Imaginava que cada ruga contava a história de uma noite sem dormir à espera de um filho na rua até tarde. E que cada ruga do cenho indicava as vezes que tinha estado de cara amarrada numa demonstração séria da amargura que lhe provocava não ter comida para lhes pôr na mesa. Cada cabelo branco significava muitos dias de frustração a sonhar que a vida não era tão difícil assim, para abrir os olhos e ver uma casa pobre de despensa vazia e muitas bocas para alimentar. Cada ruga debaixo dos olhos significava muitas lágrimas choradas pela ausência de amor na sua vida, pela saudade.
Também imaginava a sua vida de agora. Imaginava que ficava ali sozinha, enquanto a filha e o genro iam trabalhar. Os netos que deixavam um beijo fugaz naquele rosto enrugado e saiam para escola sem se lembrarem mais da existência da velhinha. Imaginava que ela se arrastava da sala para a cozinha e da cozinha para o quarto, infeliz porque já não podia ser útil a ninguém. Via-a a ser arrastada da sua aldeia quase à força porque estava demasiado velha para viver sozinha e ela a já a morrer de saudades da aldeia onde se ouviam os pássaros e as pessoas se conheciam todas pelo nome. Imaginava-a cada dia mais fraca, mais magra, definhando de tristeza por se saber um peso para os mais novos.
Cada dia uma nova historia que me entretinha a compor no longo caminho que me separava a casa do emprego. Se ela soubesse o que fantasiei com ela talvez me desse um sorriso. Ou talvez não desse, por lhe fazer lembrar que estava no fim da vida e já muito pouco tempo teria para viver, deixando para trás muitos sonhos que sabia jamais poder cumprir. Por lhe lembrar que ainda era jovem e ela não. Quem sabe o que se passa na cabeça de uma velhinha que passa o dia na janela olhando o imenso casario da cidade, faça chuva ou faça sol? Quem sabe que fantasmas habitarão a cabeça que suporta aquele rosto tão velho? Quem sabe…?
Hoje passei lá e não vi o rosto que esperava ver. A janela estava fechada e a cortina corrida. Amanha voltarei a passar, mas tenho medo de não voltar a ver o rosto sulcado de rugas. Se não o vir, saberei porquê.
Texto de ficção escrito para a “Fábrica das Histórias” por Cláudia Moreira
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