imagem retirada da net
Mascaras da vida
Todos os dias a via entrar na sala de aula de sorriso gaiato e andar felino. Sentava-se e cumprimentava-me com um bom dia num ritual agradável que me fazia sorrir. Tinha dezasseis anos. Cabelos longos a tocar no fundo das costas, pretos como as penas de um corvo. Lábios carnudos e pele perfeita. Uma menina mulher belíssima, capaz de fazer virar muitos rostos. De livros debaixo do braço dizia:
- Bom dia! E sorria.
E eu:
- Bom dia menina - e sorria também.
Depois ficava vê-la afastar-se e pensava invariavelmente que dava gosto ver alguém assim feliz. Muitas vezes até a invejava.
Durante meses o ritual do bom dia e do sorriso repetiu-se todos os dias de segunda a sexta-feira. Comecei a conhece-la melhor e a ver que era uma miúda de trato fácil, inteligente mas pouco comunicativa. Raramente participava nas aulas, mas era aplicada e tinha boas notas. Um dia não apareceu na escola. E no dia seguinte também não. Perguntei aos colegas por ela e disseram-me que estava com problemas em casa. Como quem não quer a coisa indaguei onde morava ela, precisava de a ver, saber que estava bem. Não sei bem explicar o porquê, mas de repente senti-me apreensiva em relação aquela rapariga. Por isso meti os pés ao caminho e fui procurar o lugar onde me disseram que morava. Fui andando e à medida que ia andando ia entrando numa das zonas mais degradadas da cidade. Ela morava numa pequena casa num desses bairros a que chamam ilhas. Pelo caminho vi crianças descalças de ranho no nariz, vi sem abrigos, vi lixo por todo o lado. Vi tipos de aspecto duvidoso que me assustaram bastante. Toquei à campainha e foi ela mesma quem abriu a porta.
- Olá minha querida! Posso falar contigo um bocadinho?
- Agora não é muito boa hora, na verdade.
Por trás ouvi uma voz de homem que perguntava de forma pouco agradável quem era. Ela voltou-se para trás e disse algo entre dentes sobre não ser ninguém.
- Não te tomo muito tempo querida.
Então ela fechou a porta atrás de si e ficamos frente a frente. Um olho negro e uma nódoa negra enorme no braço que ela tentava esconder com a camisola, mostravam que algo não estava bem.
- Que te aconteceu?
- Nada…
- Como nada?
- Nada, professora. Cai.
Nesse momento o pai abriu a porta e a cambalear chamou pela filha com modos agressivos. Ao ver-me hesitou. Creio que a minha presença o intimidou um pouco.
- Posso levar a sua filha a tomar um cafezinho ali na esquina? Não lhe tom muito tempo…
Ele vendo-se na impossibilidade de negar, fez um gesto com a mão indicando que podia, ela olhou-o antes pedindo autorização em silêncio. Ele deu-a mas com um olhar que dizia tudo. E eu sei que ela entendeu bem qual era o significado desse olhar. Queria dizer silencio.
Caminhamos em silêncio ate estarmos suficientemente afastadas da casa. Fi-la parar e olhei-a nos olhos.
- Diz-me minha querida. Foi o teu pai?
Ela assentiu com a cabeça e começou a contar que o pai era alcoólico desde que se lembrava. A mãe tinha abandonado o lar quando ela entrara na escola. Era ela que tratava da casa como sabia e podia. Ia à escola e comia decentemente porque contava com a caridade das vizinhas. O pai chegava a casa invariavelmente bêbado todos os dias e gritava com ela por tudo por nada. Outras vezes era pior e descarregava a sua ira através da violência gratuita. Então nessas alturas ela não ia à escola e ficava em casa até não se notarem as marcas dessa mesma ira. No resto do tempo ia à escola e fazia por esquecer o que se passava em casa. Afivelava a máscara de miúda normal e desfilava com ela até voltar a casa à noite. Assim ninguém lhe perguntava nada, nem tinham pena, nem a tiravam de casa como já haviam tentado antes. Apesar de tudo não queria ir para um orfanato. Não queria ser mais uma na estatística dos miúdos vítimas de violência infantil. Aprendeu a lidar com aquela vida, com aquela pai, com a pobreza, aprendeu a conformar-se com a vida que o destino lhe reservou.
Vim embora com o coração apertado. Estava impotente para resolver aquele problema. Sentia-me profundamente infeliz. Se por um lado queria ajuda-la por outro não queria fazer nada que a prejudicasse, nem que a fizesse mais infeliz ainda. Cogitei durante todo o caminho até casa no que ela dissera sobre as máscaras da vida. Ela era obrigada a pôr uma máscara todas as vezes que saia à rua para poder ter uma vida minimamente normal. Uma miúda de apenas dezasseis anos era obrigada a conviver com a realidade dura da violência, do medo, da falta de amor, da pobreza e ainda tinha que se mostrar alegre para ter a ilusão de que vivia uma vida normal, igual à de tantas outras miúdas da idade dela. Creio que era demasiado para uma miúda tão jovem. No entanto ela conseguia lidar com isso. Ou parecia saber.
Quando a voltei a ver, disse-lhe que lamentava que ela tivesse que usar a máscara novamente em vez de ser realmente uma miúda feliz. Ela olhou-me por um momento e disse:
- Na verdade não sou eu apenas que uso uma máscara todos os dias. Usamos todos. Só que para uns a máscara é um pouco mais parecida com a realidade e a minha é menos. A professora mostra exactamente tudo o que sente e se passa na sua vida?
Ela tinha razão, fui obrigada a concordar. No entanto não podia deixar de tentar ajudar, o problema dela era demasiado grave.
- Tenho um plano para te ajudar. Que dizes? Falamos no fim das aulas?
- Um plano? Não quero problemas professora…. - Mas os seus olhos brilharam.
- Sim, um plano. Não te quero ver mais de nódoas negras. Apesar de mostrares essa capacidade toda de aguentar a tua dura realidade, não conseguiria deitar a cabeça na almofada sem fazer algo para te ajudar. Queres ouvir?
- Espero por si no fim do dia.
Texto de ficção escrito para a Fábrica das Histórias por Cláudia Moreira
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