Hoje acordei nostálgica. Não sei bem porquê. Talvez seja pela aproximação do meu aniversário. Vou fazer oitenta anos. Na verdade nem me costumo lembrar que tenho essa idade porque me sinto maravilhosamente bem. Como se tivesse apenas trinta anos. Não apenas me sinto como também pareço. O avanço da medicina e da tecnologia foi de tal ordem que hoje somos mais resistentes, quase imortais. A mim, apesar de viver neste século e ter mente aberta, nunca deixa de me surpreender este avanço. Nasci no século XX, sou uma mulher do século XXI, tive que me adaptar aos novos tempos, às novas formas de viver. No entanto, hoje tem sido um dia de saudade. Já há muito que não me sentia tão saudosa das coisas do passado. Quando de manhã me levantei, fui à janela e não a pude abrir. Eu já sabia que não poderia, mas fez-me lembrar os tempos de miúda em que abria a janela e o ar fresco da manhã entrava pelas narinas e viajava até aos pulmões, revigorando-os. Agora não o posso fazer, em lado nenhum. A poluição é tal que as janelas já não se fazem para abrir, é uma máquina que nos purifica o ar vinte e quatro horas por dia.
Depois desta primeira lembrança, muitas outras vieram em catadupa. O pequeno-almoço já não cheira a manteiga derretida no pão torrado, porque nos alimentamos de pequenas barras energéticas, o almoço também não, a fruta não sabe a nada porque é fabricada numa estufa e não apanha sol. Não há peixe. As águas estão demasiado poluídas. O que há é demasiado caro para os bolsos dos comuns mortais. Já nada sabe como antes… olho em volta e vejo a casa branca imaculada, sem nenhum grão de pó, miraculosamente limpa pelos novos sistemas de sucção de partículas e sinto falta de ver o pó que dançava no sol que entrava pelas frestas das cortinas na casa da minha avó. Nenhuma fotografia palpável num porta-retratos de madeira. Apenas imagens reflectidas nas paredes brancas. Em cada divisão um grande LCD por onde posso espreitar a vida dos meus filhos e dos meus netos. Mas tocar-lhes é impossível. Cada um tem demasiadas ocupações, demasiados interesses. A vida deste século é assim, sempre feita a correr. As pessoas desta metade de século só serão felizes quando conseguirem aumentar o dia para mais horas, as semanas para mais dias, a vida para sempre. Não tenho nada para fazer. Esta velhice que não é velhice, deixa-nos a todos assim sem saber o que fazer. Já fizemos tanto, já trabalhamos tanto, mas não nos sentimos velhos. Mas já não nos deixam trabalhar, dizem que temos que dar lugar a outros, aos novos. Então para que queremos ter mais anos de vida? Sinto-me tantas vezes uma inútil, um bibelô que ninguém sabe o que fazer com ele…
Sempre imaginei a minha velhice sentada numa cadeira de baloiço perto do mar com um livro na mão, tomando uma chávena de chá e vendo o por do sol. Os livros deixaram de ser impressos. Ainda conservo os meus livros, são relíquias. Mas já não há livros novos em lado nenhum para vender. As bibliotecas estão vazias. Foram trocadas por leitores portáteis de e-books, mais fáceis de transportar, mas que não dão prazer nenhum. Não se sente a textura do papel, nem o seu cheiro, não estão vivos como os livros. Também já não há pôr-do-sol. Minto. Há pôr-do-sol, mas não se vê. As nuvens escuras da poluição atmosférica tapam tudo, o céu azul, o sol, já não vale a pena olhar para o céu… por isso o meu sonho de velhice foi destruído. Para sempre. Vivo entre estas quatro paredes, sei que o mundo lá fora fervilha através dos meios de comunicação social, mas nada mais. Quase nada é permitido a alguém com a minha idade. Escrevo, leio um pouco nos meus livros, falo com outros velhos como eu pela world wide Web e exercito o corpo. Espero ansiosamente pelas festas para ver os netos e os filhos e passo muito tempo a olhar pela janela vendo a cidade pequenina, muito pequenina, trinta andares abaixo dos meus pés… uma existência estúpida. E tenho saudades. Tenho tantas saudades da minha vida de antigamente. Uma vida de muito trabalho, mas plena. Tinha dois empregos mas tinha os meus filhos perto de mim. Tinha que fazer o jantar todos os dias, mas podia saboreá-lo e cheira-lo. Tinha muita roupa para lavar, mas vestíamos roupas bonitas e coloridas e não estas roupas sem graça que nos obrigam hoje a vestir porque já não há lã, nem seda, nem algodão. Era tudo genuíno, palpável, concreto. Já nada é como antes. Nem sequer as relações entre as pessoas. Nem o amor. Nem isso. Hoje ninguém se prende. Ninguém ama para não ter que sofrer. Ninguém tem tempo de amar ninguém, de dedicar tempo. Já ninguém tem tempo de viver.
Espero que o dia acabe depressa. Quero ir dormir e esquecer estas memórias. A saudade às vezes dói. Vou fazer oitenta anos e os meus dias são assim. Vazios. Tristes. Quando não penso nas memórias os dias passam, uns iguais aos outros, mas passam. O pior mesmo são estes dias de saudade de um passado que não voltará jamais… Às vezes penso que não adianta ter mais saúde na velhice neste tempo se a velhice neste tempo é cada dia mais vazia e sem sentido.
Texto de ficção escrito para a Fábrica das Histórias por Cláudia Moreira
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