O comboio avançava lentamente e eu de cabeça encostada à janela via passar os imensos campos de trigo pintados a ouro. De vez em quando uma mancha verde a lembrar um sobreiro salpicava a paisagem dourada. O céu estava tão azul que ofuscava e o sol brilhava intensamente lá no alto. Eu levava um vestido de algodão de alças finas de cor azul como o céu. Ia bem com o meu tom de pele, bronzeado nas praias alentejanas. Levava uma revista na mão e abanava-me devagar. Estava mole. Os quase quarenta graus estavam a deixar-me prostrada. A paisagem continuava a correr e o comboio continuava a sua marcha lenta: pouca-terra pouca-terra…
Na estação seguinte vi um bando de jovens de mochilas às costas e intimamente desejei que não viessem para a minha carruagem. Estava tão bem naquela modorra de fim de tarde, embalada pelo suave abanar do comboio, lendo, dormitando… E ainda faltava bastante para o meu destino.
Não entraram. Em vez deles entrou um homem de idade indefinida. Eu diria por volta dos trinta, mas também poderia ser quarenta. Educadamente disse boa tarde e sentou-se na secção de bancos ao lado da minha. Olhei-o de soslaio e não pude deixar de reparar nos seus traços finos. Estava vestido de forma casual, de azul por sinal e trazia um livro consigo. O livro foi o que mais me chamou a atenção. Confesso que me fartei de espiar o homem até descobrir o que estava a ler. Qual não foi o meu espanto quando vi que lia o mesmo livro que eu! Devo ter ficado a olhar com cara de parva, porque de repente ele estava a sorrir-me. Senti-me corar e tentei esconder o livro que tinha na mão. Demasiado tarde. Ele também já o tinha visto.
- Estamos a ler o mesmo. – Disse ele com um grande sorriso maravilhoso.
Eu balbuciei algo que ele não entendeu e eu também já não sei o que foi. Mas olhei-o e pude ver uns olhos azuis tão intensos que me hipnotizaram. Era sem duvida o homem mais bonito que vi até aquele momento! E para meu grande terror ele levantou-se e veio sentar-se no banco à minha frente.
- Olá. Eu sou o Gabriel.
E com isto estendeu a mão e agarrou na minha, num aperto de mão suave mas firme.
- Eu sou a Lara… – Gaguejei. Senti-me estúpida. Uma adulta a portar-se como uma adolescente.
Ficamos em silencio algum tempo olhando pela janela. Pelo canto do olho vi que me observava com os seus maravilhosos olhos azuis. Ganhei coragem e olhei-o também. Sorriu.
- Vamos tomar um café ao bar?
- Sim, obrigada. É uma óptima ideia!
Levantamo-nos e ele cedeu-me a passagem. Colocou uma mão nas minhas costas ao de leve ajudando-me a atravessar os corredores e chegamos ao bar do comboio. Sentamo-nos nos sofás de pele branca e tomamos um café horrível enquanto falávamos e eu já nem via a seara a passar. Contamos muitas coisas das nossas vidas e rimos de tudo e de nada. Confesso que me sentia nas nuvens. Que pena a viagem estar prestes a terminar…
Dali a pouco ele foi buscar as coisas dele. Saia na estação antes da minha e eu preferi continuar ali mais um pouco. Despedimo-nos com um abraço rápido, dois beijinhos e um sorriso. Quando saiu pela porta da carruagem senti um aperto no peito.
- Trouxe-te o livro para não te sentires tão só… – não estava a contar que voltasse para trás e apanhei um susto ao senti-lo tocar-me no braço.
- Ah! Obrigada, mas não precisavas….
- Assim pude ver-te mais uma vez…
E com isto chegou-se a mim e beijou-me os lábios suavemente e partiu. Ainda o pude ver na estação olhando-me, dizendo-me adeus até que o seu rosto se perdeu e deu lugar à seara e aos sobreiros e ao céu toldado de laranja de fim de tarde. O resto da viagem foi muito triste. Voltei para o meu lugar e preparei as minhas coisas para sair.
***
Por altura do meu aniversário já se tinham passado cerca de três meses e já não pensava tanto no Gabriel, o homem que me tinha roubado o coração em apenas três horas. Tinha sido tudo tão estranho. O encontro. A conversa. O beijo. A saudade. Tantos sentimentos confusos dentro de mim. A dificuldade em voltar para a minha vida normal depois de o conhecer. Que vida estranha. Mostra-nos a felicidade, para logo no-la tirar. Foi apenas um vislumbre.
No aniversário deram-me vários livros e andei a arrumar a estante. Peguei no livro que levava no comboio naquele dia e logo as recordações me atacaram furiosamente. Senti saudade. Senti uma dor física com a sua ausência. Folheei o livro e algo de estranho me chamou a atenção. Aquele não era o meu livro! Na primeira página podia ler em cima o nome do Gabriel e uma data, tal como eu também faço quando compro um livro e por baixo em letras bem desenhadas:
Querida Lara,
Não vais acreditar se te disser que estou apaixonado por ti. Eu próprio não acreditaria se me dissesses o mesmo hoje de manhã. Nunca acreditei no amor à primeira vista. E no entanto foi isso mesmo que aconteceu comigo hoje quando te vi pela primeira vez. O meu coração deu um pulo e disparou em marcha acelerada rumo ao desconhecido. Senti-me impelido a abraçar-te, a beijar-te os lábios perfeitos que tens. Seria loucura abandonar tudo e todos e pedir-te para fazeres o mesmo, agora, já, neste preciso momento. Não to posso pedir nem eu o posso fazer. No entanto pode ser que num futuro próximo queiras experimentar ter-me a teu lado…fica o meu coração nas tuas mãos…
Com amor,
Gabriel
Ps: a minha morada é….
Texto de ficção para a Fábrica das Histórias por Cláudia Moreira
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