Pai,
Escrevo-te agora porque sei que já não verei a manhã nascer e não quero partir sem te dizer umas coisas que tenho guardadas dentro de mim há muito tempo.
Estou doente como deves saber pela minha mãe. Há muito que nos deixaste, mas eu penso na mesma em ti todos os dias.
Tenho saudades tuas, apesar de tudo. Tenho agora dezoito anos e já não te vejo há quatro anos. Tinha portanto catorze anos quando pela última vez olhei nos teus olhos e senti que tinha pai, mesmo que tu não fosses o pai que eu queria que fosses.
Queria acima de tudo dizer-te nestas linhas que te perdoo tudo. Não tenho mais rancor no meu coração. Já desapareceu todo com a aproximação da morte. Perdoa se vou fazer-te lembrar o que não queres lembrar, mas eu preciso de morrer em paz.
Perdoo-te o dia em que me pediste para sentar ao pé de ti e retirar todos os comprimidos das tabletes. Eu não deveria ter mais de seis anos, mas percebi bem para que eram os comprimidos. As lágrimas caiam pela tua cara e dizias coisas que para mim não faziam sentido nenhum. Pude perceber que estavas infeliz. Tinhas batido na mãe mais uma vez. Fechaste-a no quarto e sentaste-te numa cadeira na sala comigo ao lado. Tomaste todos os comprimidos e abriste a porta do quarto para que eu pudesse ir para ao pé da mãe. Sentaste-te no sofá da sala e adormeceste. Depois de algum tempo ganhamos coragem para levantar e chamar uma ambulância. Ficaste um dia no hospital e voltaste arrependido. Mas eu jamais pude esquecer aquela noite.
Também te perdoo o dia em que te vi bater na mãe tanto tanto que ela fiou com a cara toda negra e as pernas e os braços também. Puxaste tanto o cabelo dela que ficaste com cabelos nas mãos. Ela tnha a minha pequena irmã ao colo e eu andava atarantada, tolhida de medo e de dor sem saber o que fazer, sem saber como ajudar. Durante muitas noites sonhei com isso. Eu não tinha ainda entrado na escola primária e não entendi porque o fizeste. Naquela altura não podia compreender que tinhas o coração cheio de ódio e o despejavas nas pessoas que menos mereciam. Ainda hoje, muitas vezes acordo de noite e “vejo” tudo de novo. Mas também to perdoo, e sei que a mãe também to perdoa.
Perdoo-te todas as noites de terror que passamos contigo durante anos. Perdoo-te todas as palavras más. Perdoo-te todas as atitudes machistas e autoritárias. Perdoo-te tudo pai, porque sei que neste momento se pudesses apagar esses dias apagavas, mas naquela altura não foste capaz de ver que estavas a cometer um crime. Que estavas a maltratar a tua mulher e os teus filhos. O álcool toldou-te as ideias, as tuas angústias gelaram-te o coração. E tua infância miserável transformou a tua alma em pedra.
Eu podia falar aqui de muitas outras coisas, mas o papel seria pouco e eu estou cansada. A doença levou-me as forças todas e estou a escrever a custo. Mas tinha que te dizer o que sinto e o que senti. Precisas de saber o que sofri, o porquê do meu afastamento durante estes anos, o porquê do meu aparente ódio por ti.
Pai, ainda podes ser feliz. Perdoa-te tu também.
Despeço-me com um beijo
Da tua filha que gosta de ti.
A carta estava junto à cama de manhã. Ela já não respirava, sucumbira á doença. O pai leu a carta e chorou durante dias. A mãe não abriu a boca para comentar. Deixou-o apenas a sentir a dor da perda da filha e das palavras duras e ao mesmo tempo bondosas da carta da filha morta.
Esta história é a história de milhares de crianças pelo mundo fora. O meu apelo é que se algum de vós tenciona ter filhos, pense bem. Pense muito bem. A história da vida não se escreve duas vezes. Não existem segundas oportunidades nestas histórias. As marcas da dor ficam gravadas a ferro e fogo e nada no mundo as apagará, por muito tempo que passe. Se alguém achar que pode cometer um erro para com uma criança e que isso não vai afectar a sua vida futura, desengane-se. Tudo afecta a vida de uma criança, um sorriso, um abraço, um estalo, uma palavra dura. São esses gestos que vão determinar a vida futura das nossas crianças, são esses gestos que vão moldar a personalidade e a sua capacidade de serem felizes. Pensem bem, pensem muito bem, é só isso que vos peço.
Texto de ficção escrito para a “Fábrica das Histórias” por Cláudia Moreira
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