Sábado, 9 de Abril de 2011

Viagem inesquecível

 

 

Quando naquele dia comecei a caminhar não sabia o que me esperava. Na verdade, por muito que pusesse a minha imaginação a trabalhar, da qual até me costumava gabar, não teria sido capaz de imaginar tudo o que aconteceu. Conheci uma espécie de novo mundo, um universo à parte. E na verdade, amei.

 

A manhã ainda não tinha nascido quando pus os pés ao caminho. Depois, o astro majestoso elevou-se até ao céu, devagar, muito devagar, devagarinho como que se estivesse a espreguiçar-se, abrindo os braços e estendendo-os, derramando a sua luz ainda apenas morna, nas árvores, nas casas, nas estradas, nos cabos de alta tensão e nos ninhos nos beirais.

 

Depois, a manhã passou devagar. Caminhei entre carreiros de ervas verdes e viçosas, onde os malmequeres selvagens irrompiam sem medo das solas dolorosas dos sapatos, e o asfalto quente e pegajoso que ao longe parecia derreter. Depois foi a tarde que veio sobranceira e feliz sempre perto, muito perto do mar. A maresia envolveu-me a pele e deixou tatuadas imagens feitas de sal. As gaivotas presentearam-me com melodias que só elas conheciam e os pulgões do mar deixaram-me passar sem se deixar ver. O sol quase me cegou porque eu não conseguia deixar de olhar para aquela enorme bola de fogo brilhante, maravilhosamente quente e distante.

 

Foi então que o sol se pôs no horizonte e os meus pés levaram-me, meios cegos, por entre rochas e escarpas. Uma falésia e depois, ao virar da esquina, foi como se tivesse viajado apenas num minuto para um lugar distante, desconhecido mas absolutamente maravilhoso...

 

A relva muito verde era um convite. Descalcei-me e senti-a macia debaixo dos meus pés massacrados pela viagem. A relva não se quebrava, pensei que seria feita de uma matéria especial, uma espécie de borracha viva, pulsante e muito bela. Depois ao longe avistei um lago feito de águas azuis. Nunca tinha visto um lago de águas tão azuis, tão brilhantes, tão serenas. Deixei-me ir até ele como se ele tivesse capacidades hipnóticas e eu não tivesse como fugir. Quando toquei com os pés nus na água, parei. A água não era fria como tinha imaginado, mas sim um pouco menos que morna. Agradável, convidativa, confortável. Fechei os olhos por momentos. Podia sentir no ar os restos do calor do dia. A minha pele estava quente e as roupas, poucas, pareciam demais mesmo àquela hora do dia. Abri os olhos e olhei em volta. Ninguém. Ao longe distinguia a vegetação luxuriante a subir pelas rochas que formavam um círculo alto à minha volta. Já não via a praia, nem o mar, nem a linha do horizonte. No entanto não estava escuro, era como se aquele lugar tivesse uma luz própria. O lago era grande, mas não muito, porque eu conseguia distinguir claramente a relva, as árvores frondosas e as flores de todas as cores que cresciam do outro lado, logo depois da linha da água.

Despi-me e entrei na água morna. Deixei-me cair sem esforço. Depois nadei até ao meio do lago e deixei-me estar ali a flutuar de barriga para cima, sem pressa nenhuma. De olhos abertos podia ver o céu de mil tonalidades, próprias do entardecer. Algumas aves planavam lá em cima e eu imaginei que fossem gaivotas, felizes, sem pressa, gozando o entardecer. O silêncio que não era silêncio imperava. Os sons da água corrente chegavam até mim, muito suaves. Eu estava tranquila, feliz. Não queria estar em mais lugar nenhum. Não tinha fome, nem sede, nem frio. Não me importavam as horas. Não pensei em nada. Apenas estava ali, a sentir a água morna a acariciar-me o corpo nu, a ver as cores do céu e a sentir o cheiro da água misturado com o cheiro das flores.

 

Fechei os olhos e pensei que não havia passado, nem futuro. Apenas aquele presente maravilhoso. De braços estendidos, sem qualquer esforço deixei-me levar ao sabor da água…

 

Foi então que senti algo na minha mão. Abri um pouco os olhos e percebi que já não estava sozinha. Um homem de olhos azul celeste, que não parecia ser novo nem parecia ser velho, estava a tocar-me na mão e sorria. Não senti qualquer medo. Sorri de volta. Não dissemos nada, não era preciso. Nadamos até à margem sem esforço e sempre a olhar um para o outro. Não tive vergonha por estar nua e ele também. Na verdade nem me lembrei de tal coisa. Não era importante sequer. Na margem, outras pessoas estavam ali e sorriram-me como se me dessem as boas-vindas. Não diziam nada mas também não parecia ser preciso. Não havia nada que desejasse saber, nem nada que precisasse de perguntar. Era como se soubesse tudo. Era como se nem interessasse saber alguma coisa.

 

Depois o homem sem idade levou-me pela mão até aos outros. O contacto da mão dele era a serenidade. Vesti as minhas roupas sem pensar nisso e ele vestiu uma túnica larga e branca. Em redor do lago algumas fogueiras crepitavam e clareavam o céu que entretanto tinha escurecido. As estrelas brilhavam como é próprio das estrelas brilharem e a lua lá em cima, branca e pura parecia olhar apenas para mim.

 

Alguns dos outros dançavam danças estranhas, sozinhos ou em grupo e sorriam. Eu e o meu companheiro deitamo-nos na relva e estendidos e de braços abertos, ficamos a ver as estrelas. Num momento entre a noite e a madrugada ele tocou-me na mão e uma espécie de choque eléctrico passou pela minha pele, entrou dentro do meu corpo e foi alojar-se dentro de cada um dos meus órgãos. Foi a melhor sensação que alguma vez senti. Nunca antes tinha sentido aquela empatia, aquela alegria por conhecer alguém. Felicidade transbordante por estar perto. Felicidade apenas por estar perto e um toque suave na mão.

 

Depois o abraço que me deu fez nascer a manhã. A claridade. O cheiro da frescura matinal. Todos estavam por ali deitados, abraçados ou não, mas felizes.

 

Levantei-me e penso que ele entendeu que me queria ir embora, porque se levantou também e acompanhou-me até muito perto da falésia. Eu não queria ir embora, mas estava há demasiado tempo fora de casa… Deixei-o para trás pensado em voltar mais tarde, talvez ainda naquele dia. Senti o peso da tristeza nos pés e no meu coração. Ainda não tinha deixado a areia ainda fria da noite quando decidi voltar. Afinal, não tinha para quem voltar. Corri em desespero para a falésia mas não fui capaz de encontrar a entrada na rocha. O sol subiu no céu até ficar a pique, depois desceu e por fim desapareceu e eu não fui capaz de encontrar a entrada para aquele lugar magico…

 

Cabisbaixa, voltei a casa. Pela vidraça da janela vi a noite na cidade matizada de luzes e telhados. Talvez tivesse imaginado tudo aquilo… uma alucinação devido ao sol… Dentro do peito o coração pequenino de saudade daquele homem sem rosto. Sei que era o amor da minha vida, aquele que me estava reservado pelo universo. Tive-o apenas uma noite e mesmo assim deixou marcas indeléveis. Nunca mais ninguém o igualaria.

 

Depois, quando os dias passaram e a rotina se instalou, pensei muitas vezes naquela noite, na miragem da vida perfeita, num mundo perfeito. Era apenas isso, uma miragem, um sonho bonito que não sei sequer se o sonhei acordada ou a dormir… mas sei e não importa que tenha sido um sonho breve, que me aqueceu o coração, me encheu de alegria e me fez acreditar que a felicidade existe, por breves instantes mas plenos. E, a lição já nem é nova, mas fiquei a pensar que tenho mesmo é que aproveitar cada um desses breves instantes ao máximo.

 

 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fabrica de Histórias

 

publicado por magnolia às 23:20
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Domingo, 13 de Março de 2011

Hoje...

 

 

Hoje despedi-me de um lugar que fez parte de mim a vida inteira. Um lugar que me viu crescer. Um lugar que me viu aprender a andar, cair e levantar, ser menina, ir à escola, crescer mais ainda, ser mulher. Um lugar com o sabor do sol de verão. Um lugar com a textura de uma pétala de rosa humedecida pelo orvalho da Primavera. Um lugar com o sabor dos figos comidos em cima da figueira, no Outono e o calor imensamente agradável de um fogão de lenha sempre aceso, todos os dias em que cheguei da escola, molhada pela chuva gelada de Inverno. O lugar mais ternurento do mundo, a casa da minha avó.  


Despedi-me deste lugar com o coração apertado pela saudade da voz tranquila da minha avó materna, da saudade das suas mãos de costureira que amassavam a massa para a boroa, que depois comíamos quente com manteiga a derreter. Já sabia que um dia teria que ser, mas só no momento se sente com rigor a dor das partidas…


Há quase três anos que nos deixou na saudade e parece que foi há tanto tempo… Faz tanta falta o seu carinho, a sua voz que nunca se elevava, a sua sopa de feijão rajado, o doce de tomate feito pelas suas mãos em tardes de inverno. Faz tanta falta o silencio daquela casa nas longas tardes de verão, do tic-tac do relógio no quarto quando ainda era obrigada a dormir a sesta. Faz-me falta o seu profundo olhar azul a dizer-me gosto de ti, em silêncio. Faz-me falta a minha querida avó.


Fechei as portas atrás de mim, uma a uma e deixei em cada divisão a saudade, mas trouxe comigo muitas lembranças, todas as que fui capaz de agarrar. Trouxe sorrisos e gargalhadas, choros e tardes de sol. Trouxe primaveras e amêndoas da Páscoa. Trouxe ameixas e manhãs de chuva à janela. Trouxe dias de brincadeiras e bolo de laranja. Trouxe tantas lembranças boas que por momentos me encheram o coração de lágrimas de saudades e sorrisos de alegria.


Fechei a última porta com dificuldade. Aquele lugar vai passar a ser de outra pessoa. De outras pessoas. Outras crianças irão correr pela casa e pelo quintal. Outros pais irão passar ali tardes de Domingo ensolaradas. Outras visitas irão apreciar o ar tranquilo do bairro aldeão. Outras memórias habitarão aqueles corredores, aqueles quartos, aquelas árvores que entretanto serão velhas. Outras pessoas usarão a cozinha para fazer pratos deliciosos e talvez deitem fora o velho fogão de lenha…


Olhei para trás uma última vez e pude ver claramente o rosto sorridente da minha querida avó a olhar-me. A mão acenava-me devagar. Por fim, pareceu-me que uma pequena frase se formava na sua boca bonita: até um dia…


E depois eu sorri e o nó desfez-se então na minha garganta…

 

 

Texto escrito para  a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira

 

 

sinto-me: nostálgica
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Domingo, 6 de Março de 2011

O último retrato

 

 

 

 

                

O Carnaval está ai à porta de novo. Sempre que se aproxima mais uma data importante parece-me sempre impossível que o tempo tenha passado tão depressa... Indigno-me e fico ligeiramente amuada e é mais ou menos por aqui que costumo ir rever o meu baú dos tesouros para comprovar que o tempo passou. Mas hoje não pôde ser logo quando me apeteceu porque ainda o almoço estava a ficar pronto no forno, quando chegaram os meus filhos, netos e bisnetos. Os mais pequenos traziam fantasias de abelhinhas, vaquinhas e outros animais fofinhos. Os mais velhinhos eram por momentos policias, índios e cowboys. Os meus netos já estavam ligeiramente grisalhos e as barrigas denotavam muitas horas de trabalho de secretária. Os filhos…bem os filhos já estavam quase tão velhotes como eu...

Almoçamos entre gritinhos e gargalhadas das crianças e os meus filhos procuravam aproveitar ao máximo a presença dos seus próprios filhos, os meus netos. Eu olhava-os enternecida e agradecia silenciosamente a Deus que me tivesse dado anos de vida suficientes para poder ver momentos maravilhosos como este. Apenas faltava ali a pessoa que tinha sido durante quarenta e cinco anos o meu companheiro de vida, aquele a quem tinha amado incondicionalmente e que me tinha sido arrancado dos braços há já dez anos. No entanto, a saudade era tanta como no dia em que, com apenas dezoito anos me tinha deixado ficar na plataforma da estação dos caminhos-de-ferro para ir cumprir o serviço militar, porque nem mesmo agora tinha deixado de o amar. Uma lágrima quis descer pelo meu rosto e a custo levantei-me, fingindo ir a cozinha, mas na verdade indo ao quarto que tinha sido o nosso. Fui até à caixa das fotografias. Precisava de lhe dizer que tinha saudades e que a família estava toda ali de visita e que os pequenos estavam lindos. Peguei numa das fotos mais antigas, depois noutra já mais velho, depois noutra e noutra e noutra. Quando dei conta já tinha muitas fotos espalhadas na cama que durante tanto tempo partilhamos.

Entre elas vi aquelas fotos que tantas vezes tínhamos visto juntos no passado... Talvez uma das mais antigas que ali estavam na caixa das memórias. Era uma das poucas fotos que tinhas trazido contigo no dia do nosso casamento. Contavas sempre entre muitas gargalhas que tinha sido um dia muito estranho o dia em que tiraram aquele retrato. Os avós tinham insistido que era preciso tirar um retrato dos netos porque estavam todos tão bonitos nos seus fatos de Carnaval. Dizias sempre que tinha sido um autentico milagre o fotografo ter conseguido que ficassem todos quietos e juntos para se poder tirar a fotografia. O que todos queriam mesmo era ir brincar e correr para o jardim. Tinha sido o último retrato de família antes que todos se começassem a dispersar.

Depois das gargalhadas olhavas cada uma das pessoas da imagem e contavas que a prima Maria, vestida de criadinha, tinha morrido no ano seguinte de tuberculose. O primo José, vestido de engraxador, tinha ido estudar para Coimbra e era agora doutor. O primo Manuel, vestido de arlequim, tinha ingressado no seminário e a prima Adelaide, vestida a rigor de dama antiga, tinha casado com um estrangeiro e depois disso não tinha voltado a Portugal. Contavas o que tinha sucedido a cada um e com o passar dos anos as histórias aumentavam o volume e evoluíam tal como a própria vida. Era a partir dali, daquela imagem, que construías as histórias da tua família para me poderes contar tudo o que eu não sabia de ti. Era para ti uma referência, uma cábula, uma memória em papel para não te deixar esquecer nenhum deles...  E, mesmo depois, quando a doença te começou a fazer esquecer as tuas memórias, gostavas sempre de ir ali à nossa caixa das recordações para lembrar o que por vezes teimava em querer desaparecer...

Com o retrato na mão olhei pela janela. Os meus bisnetos brincavam no meu pequeno jardim, os meus netos e os meus filhos estavam sentados nos bancos de jardim pintados de branco que eu própria tinha pintado há muitos anos atrás… Guardei tudo na caixa e limpei as lágrimas. Quando cheguei ao jardim levava comigo um sorriso aberto.

- Meus queridos filhos, tenho a certeza que um de vocês tem uma máquina fotográfica. Gostava muito de ter um retrato de família no dia de hoje… Acham que podem fazer esse gostinho aqui à vossa velhota?

 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica das Histórias

 

publicado por magnolia às 23:36
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Domingo, 20 de Fevereiro de 2011

Post-scriptum

 

 

 

Beijos, muitos,

 

Com amor.

 

c.m.

 

 

Post-scriptum: Já tinha dobrado a folha em três com todo o cuidado… Já a tinha colocado dentro de um dos envelopes especiais que uso para te escrever... Já tinha decidido não pensar mais em ti… Já tinha despido a roupa que tinha usado nesse dia que ainda trazia o teu perfume. Já tinha entrado na banheira, o vapor da agua quente a envolver-me o corpo… já sentia a água a cair no cabelo, nas costas, no peito, a descer pela barriga, a passar livremente pelo pequeno triangulo negro, a descer numa carícia longa pelas coxas e sempre até aos pés… E foi então que senti uma vontade incontrolável de te ter perto… De sentir novamente as tuas mãos macias no meu corpo, fazendo-o sentir coisas que mais ninguém fazia sentir… De sentir o teu beijo lento, quase tântrico… de sentir a tua urgência ali tão perto da minha urgência… Fechei os olhos e imaginei que estavas ali comigo…que me dizias que era tudo um engano e que querias fazer amor comigo uma única vez a noite toda ou muitas vezes na noite toda… e que não importava que não dormíssemos nem importava que gritássemos e não importava que relampejasse e trovejasse, nem importava que o mundo acabasse…E beijavas-me a boca, o pescoço, o peito e todo o meu corpo… E dizias que me amavas... Que me amarias para sempre...

 

Depois abri os olhos e estava sozinha e a água continuava a correr pelo meu corpo e a desaparecer no ralo da banheira… Envolvi-me numa toalha que tinha sido a tua toalha e ainda molhada escrevi estas palavras…Não sei a razão mas apeteceu-me partilhá-las contigo. Por isso abri novamente o envelope, desdobrei a carta e agora escrevo-as… São para ti… São para que saibas que jamais te esquecerei…

 

 

No meu corpo estás tu

Dentro de mim, fora de mim, em mim…

Para sempre…

Nos meus lábios o gosto adocicado

Dos teus lábios carinhosos… ansiosos…

Para sempre…

Na minha boca ainda a tua língua

Segura e quente… num pedido urgente…

Para sempre…

Na textura dos meus dedos

Os teus dedos suaves… irrequietos…

Para sempre…

Nos meus ouvidos o som da tua voz

Quente, envolvente a dizer palavras de amor…

Para sempre.

Nos meus negros e longos caracóis rebeldes

Ainda a urgência quase bruta dos teus dedos…

Para sempre.

O teu perfume aprisionado em cada poro

Da minha pele, agrilhoando-se a cada fino pêlo meu…

Para sempre…

Na minha branca epiderme estás tu

Intensa e profundamente tatuado…

Para sempre.

Para sempre.

 

 

A minha palavra para ti é amor. Depois mais duas: para sempre!

 

Beijos com sabor a saudades perpétuas...

 

Com amor.

 

c.m.

 


 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica das histórias

 

 

sinto-me: pensativa
publicado por magnolia às 23:21
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Domingo, 13 de Fevereiro de 2011

Isa

 

 

 

 

Isa não era uma menina como todas as outras. Trazia uma herança consigo no dia em que nasceu: poderes mágicos!

Isa descendia de uma longa linhagem de bruxas e feiticeiros, todos eles famosos e bastante temidos pelo comum dos mortais. Mas Isa nasceu muito diferente dos seus pais, tios, avós e bisavós…

Isa nasceu com os cabelos loiros e de olhos azuis, os mais bonitos de que já ouvi falar. Não tinha nenhuma parecença com a família, seres não muito bafejados pela beleza, todos demasiado morenos e sinais particulares como narizes aduncos, pele com verrugas e cabelos crespos. Mas ela não, a sua pele branca, quase etérea que apetecia tocar, os seus olhos azuis céu electrizante fazia-a parecer um pequeno anjo no meio de todos os outros seres com mais ou menos aspecto demoníaco.

Também por dentro Isa se revelou diferente de todos os outros. Ao contrário dos outros elementos da família, não revelou cedo o poder que detinha. Em vão os pais tentaram que ela fizesse poções venenosas, dissesse palavras mágicas, que transformasse gatos em cães e cães em gatos, que tornasse um doce salgado ou mais simples ainda que fizesse tombar copos sem tocar com as mãos ou fizesse garfos e facas dançar em cima da mesa. Até que um dia, desistiram.

Isa foi votada ao esquecimento. Os pais cobertos de vergonha por aquela filha que nada sabia fazer e ainda por cima com um aspecto angelical que os deixava sem saber onde se meter, deixaram-na à porta de uma igreja no sítio mais recôndito dos pais. Isa tinha sete anos.

O pobre padre que a encontrou quando foi abrir a porta para a primeira missa do dia, rendeu-se de imediato à sua beleza. Deu-lhe um frugal pequeno-almoço que era basicamente tudo o que tinha e tentou compreender porque a teriam ali deixado mas Isa não disse uma palavra. Olhava através do padre e fixava a sua atenção na pequena imagem de Maria, único objecto decorativo da parede que se erguia atrás o padre. Ao cabo de uns minutos o pobre homem desistiu. Deu-lhe a mão e levou-a até à igreja. Deixou-a sentada no banco da frente e disse a missa pedindo a Deus que guiasse os seus passos, que o ajudasse a perceber o que fazer com aquela menina tão estranha que lhe tinha aparecido ali à porta.

Depois da missa levou-a novamente para casa e voltou a insistir para que lhe dissesse quem era e de onde vinha, mas o resultado foi o mesmo. Nada. Nem uma única palavra. O padre não teve coragem de a mandar para um orfanato e depois de indagar pelos seus paroquianos se sabiam quem ela seria, foi ficando com ela. Angariou entre os seus fiéis algumas roupas e calçado para ela e passou a dormir na sala, cedendo-lhe assim o seu quarto.

Passaram-se dias, semanas e meses e nada de Isa falar. Nem um som. Os seus olhos vagueavam por todo o lado, mas atentos a tudo. Tocava em todos os objectos com uma delicadeza que impressionava, estudando-os, quase como se fosse cega e usasse a ponta dos dedos para ver. Crescia e estava cada dia mais bonita.

Um dia algo aconteceu que mudou o rumo da vida de todos os habitantes da aldeia. Foi um Domingo na missa da manhã. O sol ainda nem sequer tinha nascido. Isa estava sentada no banco da frente como em todos os Domingos desde que ali tinha chegado. Nessa manhã tinha uma outra pessoa sentada nesse banco. Era uma menina mais ou menos da idade de Isa que raramente saia de casa porque sofria de uma doença degenerativa e as pernas estavam a deixar de funcionar. Isa olhou-a longamente no rosto e depois para as mãos que estavam encolhidas e depois para as pernas, demasiado magras e tortas, os pés deformados dentro de uns sapatos velhos. Depois de uns momentos assim, em meditação, Isa saiu dessa espécie de contemplação e tocou ao de leve na menina. Primeiro no rosto e depois nas mãos e de seguida nas pernas. Depois encostou-se mais a ela e segredou-lhe ao ouvido:

- Olá, eu sou a Isa e tu?

Foi então que a menina começou a gritar. O padre olhou-a estarrecido e as poucas pessoas que ali estavam, incluindo a mãe da menina doente acorreram a ver o que se passava… Depois de uns momentos de confusão, em que Isa se deixou estar quieta e calada, a mãe da menina doente caiu desmaiada. Quando voltou a si, um ou dois minutos depois, tudo estava como antes. A sua filha estava curada. Nem sinais de pernas tortas ou mãos tolhidas. Nada. Perfeita. Olhou-a sem compreender. Então a menina, já um pouco mais refeita da surpresa pelo que lhe tinha acontecido, levantou uma das mãos e apontou sem qualquer problema para Isa e disse:

- Foi ela que me curou!

Foi o descalabro total, a confusão, gritinhos, toda a gente a falar ao mesmo tempo, o padre a tentar instaurar a ordem. Apenas a Isa se mantinha calada.

Na sua cabeça não compreendeu de imediato o que tinha acontecido. Saiu de mansinho e foi até à casa de uma pessoa que ela sabia que estava doente pois tinha acompanhado o padre muitos Domingos em que ele levava a Comunhão ao tal senhor que já não podia sair da cama. Tocou à porta e fez sinal como quem pergunta se podia entrar. A mulher abriu-lhe mais a porta e deixou-a passar. Isa entrou então no quarto e tocou ao de leve na cabeça do homem, depois no corpo, sempre levemente, depois fechou os olhos e no seu coração desejou que aquele homem ficasse bom. Quando os abriu ele estava a sorrir mas as lágrimas corriam-lhe pela cara… sentia-se de saúde perfeita, levantou-se da cama e pegou na Isa ao colo, abraçando-a. Quando a pousou, Isa sem dizer nada, foi até à porta…

Lá fora, quase toda a aldeia a esperava. Tinham ido atrás dela e de caminho outros se tinham juntado à procissão. Receberam-na entre clamores de admiração e suspiros de receio e respeito. Isa, um pouco assustada, foi até à beira do padre e disse-lhe ao ouvido que queria ir para casa…

O padre, feliz, ergueu os olhos ao céu e agradeceu aquele milagre em forma de menina que Deus lhe tinha posto à porta.

Depois deste outros milagres se seguiram. Isa afinal tinha verdadeiros poderes mágicos, que cresciam com ela, mas esses poderes mágicos tinham uma condicionante: só funcionavam se fossem acompanhados de verdadeiros actos de amor. E isso Isa tinha para da e vender, Isa tinha um enorme coração, cheio de amor a transbordar!

 

E, pronto, é esta a história de Isa, a pequena feiticeira de olhos azuis. Claro que não passa de ficção, de uma história que acabei de inventar, mas dou comigo a imaginar que embora ninguém tenha verdadeiros poderes mágicos, todos nós somos capazes de pequenos grandes actos de amor e que muitas vezes esses pequenos grandes actos de amor são capazes de fazer verdadeiros milagres. De fazer alguém que está triste sorrir, de fazer alguém que esta doente ficar melhor, de tornar alguém solitário menos infeliz…como por magia… Palavras, abraços, sorrisos, carícias são pequenos gestos mágicos que podem transformar a vida de alguém. Experimentem um pouco desta magia vocês mesmos. Quem sabe um dia não se tornam verdadeiros feiticeiros do amor?

 

 

Texto de ficção escrito por Cláudia Moreira para a Fábrica de Histórias

sinto-me: pensativa
publicado por magnolia às 18:05
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Domingo, 6 de Fevereiro de 2011

Página em Branco

 

Deus encontrou-me na berma da estrada, quando me sentei, quebrada, para descansar. As minhas lágrimas, grossas, caiam-me no vestido que eu sabia ser vermelho, mas que eu não via senão cinza e deixavam grandes marcas redondas mais escuras. Sucumbi ao cansaço extremo da caminhada que fazia e deixei-me cair naquela beira de estrada perdida do mundo. Olhei o céu mas o não vi azul, depois olhei as copas das árvores e não as vi verdes. Também não senti o cheiro das flores silvestres que por ali cresciam livres e despreocupadas da vida. E os pássaros, criaturas livres que esvoaçavam por ali, não os ouvi também. Nada parecia bulir ao meu redor. O cinzento pigmentava tudo e a minha alma era da cor das rochas vulcânicas.

Deus disse-me:

- Que tens mulher?

- Estou cansada da minha vida… - respondi eu a custo.

E Deus que tudo vê, disse-me então.

- Sei de que precisas. Vou dar-me uma oportunidade única na vida. Uma página em branco onde poderás reescrever tudo!

Eu, que mal conseguia sustentar-me de pé, agradeci e pela primeira vez em muito tempo, esbocei um sorriso. Pensei na possibilidade de começar tudo de novo e em como seria apagar todos os erros cometidos, excluir pessoas que me magoaram.

Então de repente, como por magia, tudo ficou branco e silencioso à minha volta. Não havia estrada, nem muros, nem árvores, nem céu, nem pássaros. Nada. Apenas o vazio. Na minha mão uma folha e um lápis. Pensei então que o ideal seria começar do inicio, do dia em nasci.

Ia para escrever que tinha nascido de pais ricos quando me apercebi que então não poderiam ser os meus. E eu não queria outros pais, queria aqueles que tanto me haviam ensinado e amado. Então escrevi que queria os mesmos. Depois pensei nos meus irmãos e percebi, mesmo na imensidão branca onde estava, que gostava tanto deles que me seria impossível nunca mais os ver. Também não queria outros irmãos. Então escrevi que queria os mesmos pais e os mesmos irmãos. Depois pensei em andar numa escola diferente onde pudesse fazer amigos, mas depois pensei com saudades na primeira vez que me sentei num dos bancos da escola, que depois os meus filhos haveriam de se sentar nos mesmos, na professora que sempre me elogiou e pensei que não queria outra escola, nem outra professora. Então escrevi que queria os meus pais, os mesmos irmãos, a mesma escola e a mesma professora. Depois pensei que não queria ter tido o mesmo marido mas rapidamente entendi que mesmo no meio da tristeza houveram coisas boas e filhos maravilhosos que com outro marido não poderiam de maneira nenhuma ser os mesmos. Então na minha história nova ficaram os mesmos pais, os mesmos irmãos, a mesma escola, a mesma professora, o mesmo marido.

Foi nessa altura que uma saudade dolorosa invadiu todo o meu ser e só pensava que queria abraçar os meus filhos, apertá-los nos meus braços, beijá-los muitos, tê-los perto de mim, carne com carne. Pensei que gostaria de partilhar um abraço com aquele que foi meu marido, agradecer pelos bons momentos e perdoar os menos bons. Senti uma grande vontade de voltar aos bancos da escola, de voltar a aprender coisas novas, de ter alguém que me elogiasse e incentivasse a ser sempre boa em tudo o que fizesse. Apetecia-me abraçar os meus irmãos e lembrá-los que os amos muito. E ao mesmo tempo queria tanto agradecer aos meus pais por me terem feito quem sou, pela educação que me deram, pelos valores que me incutiram, pelo amor, por todo o amor...

Por fim, pensei nas tardes solarengas de verão da minha infância, do céu tão azul como nunca mais vi outro, das nuvens com formas que me faziam voar a imaginação para lugares longínquos, das flores amarelas que eu juntava em colares e pulseiras e coroas de princesa, nas amoras que colhia nos caminhos velhos e me sabiam pela vida…

Por fim, o pensamento mais importante de todos entre todos, pensei no dia de nascimento dos meus filhos, na primeira vez que os vi, nus, indefesos, frágeis, enrugados, pequeninos. Pensei na felicidade que me encheu o coração, na promessa intrínseca de os proteger e amar até ao fim da vida. Pensei na alegria de ser mãe, de ter criado um novo ser, perfeito e belo como mais nenhum. Agradeci ter sido tão bafejada pela sorte ao conceder-me o privilégio de ter tido aqueles filhos, os meus filhos.

E foi mais ou menos por aqui que os meus lábios formaram um sorriso aberto incontrolável e foi mais ou menos por aqui que abri os olhos e me senti dorida da pedra dura onde me tinha sentado e vi o céu azul, as árvores verdes, os pássaros a cantar, os pequenos dente-de-leão amarelos que cresciam ali mesmo na berma da estrada e que eu podia tocar se quisesse. E o vestido. O vestido vermelho ainda húmido das minhas lágrimas…

Levantei-me e não senti cansaço nenhum. Segui caminho como se tivesse apenas começado agora a caminhar. Senti que tinha forças para caminhar até ao fim do mundo se preciso fosse. Senti que estava viva e que, acima de tudo, queria continuar viva por mim, e por todos aqueles que fazem parte da minha vida, e farão.

Na verdade, tenho de dizer a Deus quando o encontrar de novo, que não tenho necessidade nenhuma de uma página em branco…

 

Texto de ficção escrito para a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira

sinto-me: pensativa
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Sexta-feira, 28 de Janeiro de 2011

Chama Solitária

 

 

Eu estava ali sentada há apenas alguns minutos e a única chama acesa era aquela que eu própria tinha acendido.

 

A igreja estava deserta, escura e fria. O cheiro bafiento da madeira comida pelo bicho e da cera derretida impregnavam o ar. O cheiro próprio dos velhos que debitam terços atrás de terços pairava por ali denunciando a sua presença assídua. Sentei-me no banco mais próximo de uma coluna larga de pedra fria onde estava encostada a mesa com as velas. Acendi uma delas e sentei-me, enrolada num velho casacão gasto, a olhá-la. A chama clara e quente libertou um cheiro agradável. Sentia a falta das minhas pessoas, daquelas que já partiram e lembrei-me delas com saudade, mas não rezei. Bem sei que é absurdo ir à igreja, acender uma vela e não rezar, mas já nem sequer me lembro das orações que aprendi na catequese. Já não sei rezar. Penso apenas nas minhas pessoas e sinto-lhes ainda a carne quente nos meus lábios como quando em vida lhes dava beijos nas caras já enrugadas. Os meus queridos avós.

 

Tenho muitas saudades e sinto uma pontinha de dor no peito. As lágrimas querem sair mas não deixo. Não quero chorar. Sei que eles também não querem que eu chore. Olho os vitrais da velha igreja românica e penso na sua beleza. Ouço o silêncio e deixo que entre dentro de mim. Sinto-me em paz ali entre as altas e velhas paredes de pedra gasta. Os santos olham-me de cima dos seus altares vestidos com as suas roupas estáticas e parecem tristes.

 

Eu também estou triste. Sinto-me só. Vou muito à igreja em busca da paz que me falta na vida. Por vezes tento conversar com Deus, mas ele não é muito conversador. Mas é bom ouvinte e eu aproveito para desabafar. Conto-lhe tudo. Conto-lhe tudo o que me vai na alma. Conto-lhe o que me atormenta. Conto-lhe os meus sonhos. Conto-lhe os meus desgostos. Às vezes peço-lhe a opinião sobre uma coisa ou outra mas ele na maioria das vezes fica em silêncio absoluto. Creio que fica à espera que eu própria encontre a resposta dentro de mim. Umas vezes encontro, outras vezes não. Acho que ele poderia facilitar muito mais a minha vida...

 

O tempo passa e dói-me o corpo de estar tanto tempo sentada na mesma posição no velho banco de madeira. Está frio. Um arrepio passa por todo o meu corpo e até os cabelos no alto da cabeça ficam eriçados. É noite já. O velho padre passa a coxear pela nave principal e vê-me. Cumprimenta-me educadamente. Já me conhece destas visitas solitárias mas até agora nunca me falou. Creio que desconfia que o meu propósito não é o religioso e não me confronta. Talvez tenhas esperanças que um dia venha a ser e lhe fale de livre vontade.

 

Penso em ir embora, mas não me apetece. Não tenho ninguém lá fora à minha espera. O meu estômago ressente-se das horas que ali passei. Digo em silêncio adeus aos meus entes queridos, cumprimento com um aceno de cabeça a Virgem e o menino, o São João Baptista e a Santa Rita. Levanto-me e depois de um breve sinal da cruz viro as costas ao altar e saio para a noite fria de Inverno. E também a frágil chama solitária se extingue...

 

 

Texto de ficção escrito para a Fábrica das Histórias por Cláudia Moreira

publicado por magnolia às 21:28
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Domingo, 23 de Janeiro de 2011

Não há amor como o primeiro...

 

É verdade caros leitores, não há amor como o primeiro, e a prova disso é a minha própria história de amor. Querem ouvir?

Ainda usávamos fraldas quando nos vimos pela primeira vez. Ele e a sua família tinham acabado de se mudar para a casa ao lado da nossa. Depois dos primeiros dias de timidez começamos a brincar. Ele trazia os carrinhos para o nosso jardim e eu punha as bonecas em cima dos carros. Depois inventávamos que íamos todos passear, os bonecos eram os filhos e nós, a mãe e o pai. Depois, a minha mãe fazia um bolo de laranja e leite com chocolate para o lanche e comíamos, felizes, sentados numa pequena manta debaixo do carvalho que ocupava uma grande parte do jardim. E riamos muito de tudo e de nada e éramos felizes.

Depois veio o tempo da escola e íamos os dois de mão dada até à escola. As nossas mães, atrás, conversavam e eram amigas. Deixavam-nos na escola e sentávamo-nos sempre um ao lado do outro. No recreio ele não ia jogar à bola com os amigos enquanto não tivéssemos lanchado os dois, sentados nos degraus da parte de trás da escola. Depois se algum menino ou menina se metia comigo era certo que ele me defendia, debatia-se e batia até que me tivessem pedido desculpas. Quando ele rasgava as calças na escola eu pedia à minha mãe que as cosesse para que a mãe dele não lhe ralhasse. Depois da escola saiamos a correr para a rua e brincávamos até que a noite nos obrigasse a voltar. Foi ele que me ensinou a andar de bicicleta e fui eu que o ajudei em todas as lições que ele não conseguia perceber. Partilhamos segredos, inventamos brincadeiras. Depois do jantar escapávamo-nos de casa e íamos ver as estrelas deitados no telhado, nas traseiras da casa dele. Dávamos as mãos conversávamos horas e horas a fio sobre tudo e sobre nada. E os anos passavam tranquilos e felizes.

Depois veio a adolescência e com ela alguma estranheza de sentimentos. Os abraços que tantas e tantas vezes tínhamos trocado tinham agora outro sabor. Olhávamos nos olhos um do outro e sorriamos. Depois um dia houve um beijo. E depois repetimos esse beijo. E depois dessa noite e desses beijos soubemos que seriamos um do outro para sempre.

Dissemos aos nossos pais aquilo que eles já sabiam. Dissemos que era amor o que nos unia. Era o nosso primeiro amor e tínhamos a certeza de que seria o último. Tínhamos certeza de que nada nem ninguém nos poderia separar. Fizemos planos para o casamento, imaginamos os nossos filhos a brincar ali mesmo naqueles jardins onde nós sempre brincamos. Planeamos viagens e imaginamos chegar a velhos de mãos dadas.

Depois um dia veio a faculdade e tivemos que separar os nossos caminhos pela primeira vez. Foram dias tristes os que antecederam a partida, cada um para uma cidade diferente. Depois as saudades foram demasiadas e tivemos as nossas primeiras desavenças. Depois conhecemos outras pessoas e desligamo-nos um pouco. Terminamos.

Durante alguns anos namoramos outras pessoas, fizemos outros planos. Crescemos. Parecia-me que éramos felizes. Mas não éramos. Nenhum amor era como tinha sido o nosso amor.

E tivemos a certeza absoluta disso no dia em que nos voltamos a encontrar. Cara a cara, olhos nos olhos. Foi num dia de Outono e as folhas cobriam o jardim de casa dos meus pais. Ele era agora um homem. Deixara crescer uma barba, que embora rala, lhe ficava bem. Os olhos azuis eram agora os olhos de um homem, o adolescente tinha ficado para trás no tempo. Eu própria estava diferente, mais mulher. Olhamos um para o outro longamente. Depois ele caminhou até mim em silêncio e abraçou-me carinhosamente. Foi como se o tempo não tivesse passado. Beijamo-nos e nesse beijo estava a certeza de que afinal iríamos ficar juntos. Para sempre…

 

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

sinto-me: pensativa
publicado por magnolia às 23:21
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Domingo, 16 de Janeiro de 2011

Raiva, uma amiga preciosa...

 

 

 

Já era a terceira vez em menos de dez minutos que aqueles fedelhos mimados me mandavam ir buscar a bola, que invariavelmente quando a chutavam com demasiada força, ia cair no meio das roseiras. Já tinha um belo arranhão na perna.

- Eh! Tu aí! Vai buscar a bola!

E riam-se de mim…Respirei fundo. Não podia dizer que não. Os dois rapazes eram filhos dos patrões dos meus pais e não me convinha que fossem fazer queixa de mim. Larguei a enxada com que estava a preparar a terra para pôr umas flores novas no jardim e pela quarta vez fui buscar a bola.

- Oh fedelho! Vai-nos buscar água! Temos sede!

Os pequenos reizinhos suados e malcriados debitavam ordens atrás de ordens. A mim metiam-me nojo estes rapazes que mal sabiam ler e escrever mas agiam como se fosse os seres supremos do universo. A culpa era dos pais que os mimavam demais.

Com a água na mão, olhei o fundo do copo e apeteceu-me cuspir lá dentro. Nunca diziam por favor. Nunca diziam obrigado.

- Cheiras a bosta de vaca! Que nojo! Não tens banheira em casa?

Não lhes respondi. Dentro de mim a raiva crescia. Tinha tanta, mas tanta vontade de lhes dar um estalo! Como podiam ser tão indelicados? Tão maldosos?

Quando eu nasci já os meus pais estavam empregados naquela casa. Eram pessoas humildes, sem estudos, sem recursos mas honestos. Tinham vindo viver para ali, logo que se casaram, como caseiros, há falta de melhor. Na aldeia onde viviam não havia lugar para eles e muito menos para os filhos que queriam ter. Os patrões eram velhos e com a sua morte sucedeu-lhes o filho mais velho como patrão da casa. Este filho, advogado, raramente estava em casa e deixava que todos os assuntos fossem tratados pela mulher. A mulher, uma alma diabólica, pessoa capaz de tudo para ser o centro das atenções, pisava todos os que tivessem a infelicidade de estar por perto. Os meus pais eram talvez os mais afectados. O meu pai menos, porque tinha a sorte de trabalhar nos jardins e nos pequenos arranjos e não tinha que dar de caras com ela muitas vezes, no entanto a minha mãe era o bombo da festa. Na cozinha era a pior cozinheira do mundo, nos quartos só fazia asneiras, nas roupas eram uma desmazelada. Tudo isto na boca da vil patroa, porque a minha mãe era uma funcionária eficiente, organizada, tranquila e humilde. E de tão humilde que era deixava-se sempre pisar.

Eu cresci ali, a ver tudo isto. Também cresceram os filhos dos patrões. Eram apenas dois anos mais novos que eu, mas não nos era permitido brincar. Eles brincavam no quarto dos brinquedos, vestidos com as suas roupas de principezinhos e eu ajudava o meu pai no jardim. Cresci com a terra debaixo das unhas das mãos e o cheiro do estrume impregnado na roupa. Depois ia à escola mas nunca conseguia disfarçar os lanhos nas mãos, o cheiro da terra na pele. Eles chegavam de uniforme imaculado no carro com motorista e olhavam-me com desprezo. As minhas roupas não eram bonitas. Os meus sapatos eram sempre herdados de outros rapazes, às vezes um número acima. Eu não tinha brinquedos bonitos. Eu não tinha livros encadernados. Eu era pobre.

- Não ouviste? Além de cheirares a vaca também és surdo?

Olhei-os com desprezo. Nos olhos deles vi desprezo pela minha condição de pobre, nos meus eu sabia que havia desprezo pela sua condição de estúpidos. Senti a raiva crescer dentro do peito, avançar pelo meio dos músculos, levada na corrente sanguínea para todos os pontos do meu corpo, mesmo os mais pequenos ou afastados. Senti um calor insuportável na cara. Dentro de mim uma revolta demasiado grande para um miúdo suportar. E um gosto amargo de orgulho ferido. Eu sempre fui pobre, mas não burro. Era capaz de fazer tudo o que eles faziam! Era capaz de usar as mesmas roupas! Era capaz de estudar as mesmas coisas! A culpa de ter nascido pobre não era minha. Tinha sido o acaso.

Raiva. Era uma raiva muda que habitava agora dentro de mim. Todos os dias crescia. E crescia. E de cada vez que se cruzava com os pequenos déspotas ou com a sua viperina mãe sentia-a crescer ainda mais. Estava dentro de mim como um tumor maligno. E crescia. E crescia. E parecia-me a mim ser um mal incurável. Fiz juras de um dia me vingar! Fiz juras de um dia ser poderoso! Sonhei que um dia todos eles haveriam de precisar de mim! Construi histórias rocambolescas em que eles andavam andrajosos pelas ruas e ninguém os ajudava, como se fossem leprosos! Sentia a raiva muda comandar todos os meus pensamentos e sonhos! E então jurei que um dia haveria de ser tão poderoso como o patrão e achei que nada melhor do que a mesma profissão para conseguir alcançar esse objectivo.

 

Hoje tenho quase cinquenta anos e sou efectivamente advogado. Não importa se sou poderoso, ou se sou tão poderoso como o meu antigo patrão. Importa apenas concluir a história. A raiva é uma coisa má porque nos corrói a alma e tenho a noção de que passei grande parte da minha vida a senti-la. Mas mesmo assim com uma carga tão negativa eu quero agradecer à raiva. Quero agradecer que tenha me servido de alavanca para estudar, para lutar por vida melhor. Não posso dizer como teria sido a minha vida se as coisas tivessem corrido de outra forma, mas era bem possível que hoje fosse jardineiro na mesma casa, que continuasse pobre e a passar necessidades. Quem sabe se continuaria a ser humilhado e maltratado, ou os meus filhos. Mas hoje, e graças à raiva que senti na minha infância e adolescência, tenho uma carreira de sucesso e faço o que gosto. Consegui melhorar efectivamente a minha vida e a dos meus pais. Quando entrei na faculdade deixei para trás a casa, os reizinhos e os pais. Deixei tudo para trás e a raiva deixou de fazer sentido, mas entretanto já tinha conseguido uma bolsa de mérito e estava a adorar o curso de Direito.

Por isso hoje sorrio quando penso na raiva que me queimava as entranhas e agradeço-lhe efusivamente! E, apesar de até poder ser divertido, já não sonho que os pequenos reizinhos se cobrem de bosta de vaca em praça pública para gáudio da população!

 

 

 

Texto de ficção escrito para a fábrica das histórias por Cláudia Moreira

sinto-me: :)
publicado por magnolia às 00:05
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Quarta-feira, 5 de Janeiro de 2011

O Lobo-do-mar

 

Era noite e seria ainda durante muito tempo quando entrei no cais. Um nevoeiro cerrado, apenas interrompido pelas luzes da via pública, sepultava tudo. Era Janeiro e estava aquele frio que corta a pele deixando-a vermelha, gretada e dorida. O eco dos meus passos. As minhas botas a calcarem as pedras e a fazerem o barulho cadenciado dos passos. Com a mão livre ajustei a gola do casaco impermeável, na outra levava o saco do farnel que haveria de me sustentar durante a faina. Encolhi-me. Procurei com os olhos os outros mas estava sozinho. Era o primeiro. Parei por momentos e pousei o saco no chão. Ouvi o barulho característico da garrafa a tocar o chão através da lona. O prato, os talheres, a caixa de plástico hermeticamente fechada com o pão. A sopa na panela térmica. Acendi um cigarro e aspirei o fumo. Fechei os olhos, senti o prazer do fumo nos pulmões e expeli-o para o ar frio da noite. Uma nuvem clara de fumo desfez-se na minha frente. Tornei a arranjar a gola do casaco, aconchegando-a mais ao pescoço. Peguei no saco e retomei o caminho por entre as caixas de plástico empilhadas, as redes dobradas, as cordas de nylon e os colvos. Tudo à espera da madrugada para regressar à labuta.

 

Foi só quando já estava perto, muito perto do Lobo-do-mar que vi. A beata tombou dos meus lábios, a minha mão abriu-se sem que desse por isso e o saco caiu, incólume, nas pedras gastas do chão. Deixei de ouvir o marulhar das ondas a bater no cais. Deixei de respirar.

 

O Lobo-do-mar.

 

O meu barco, meu ganha-pão, o Lobo-do-mar. O meu ganha-pão e o de mais cinco homens do mar, o sustento de seis famílias estava a afundar-se. Apenas a cabine restava fora da água. Tudo o resto estava submerso, perdido, destruído. O sonho de uma vida estava destruído. Irremediavelmente perdido na água escura do cais, entre as algas e os restos de redes, as tainhas e o lixo que flutuava por ali. Em breve não restaria nada. Apenas a corda grossa que segurava o Lobo-do-mar ao cais ficaria visível para o lembrar. Talvez nem isso. Talvez o peso do barco a ser puxado para o fundo a rebentasse e não restasse mais nada…

 

Corri até à borda do cais e deixei-me cair de joelhos. Levei as mãos à cara e tapei-a. Em desespero fechei os olhos com força esperando, esperançado, que quando os abrisse nada daquilo fosse verdade. Alguns segundos depois quando os abri nada tinha mudado. O Lobo-do-mar continuava a afundar-se lentamente. Os caixotes de plástico onde costumávamos guardar o peixe estavam agora a flutuar por ali em redor da cabine do Lobo-do-mar. Bóias vermelhas e pedaços de esferovite também.

 

Como teria sido aquilo possível? Deixei-me ficar ali muito tempo, sentado nos meus próprios pés, braços caídos ao longo do corpo, quase inanimado, a olhar o desastre a acontecer.

Depois ouvi vozes aflitas e percebi que os outros estavam a chegar. Estavam a ver o que eu também estava a ver. Já não restava quase nada. Não havia mais nada que pudéssemos fazer para evitar a tragédia.

 

Levei vinte anos da minha vida a poupar para comprar o Lobo-do-mar. Depois mais cinco para o restaurar. Trabalho árduo de sol a sol, muitas vezes noites, domingos e feriados. E agora o que restava desse sonho era um lugar vazio ligado a uma corda grossa presa ao cais.

 

Senti que me levavam em braços. Senti que me davam algo para beber. Senti que me abanavam a cara. Ouvi vozes a falar sobre como estava sem reacção. Ouvi uma sirene e pensei no nevoeiro e no perigo de ir para o mar assim. Vi luzes azuis intermitentes.

 

Estava numa ambulância.

 

Abri os olhos e na minha frente apenas a imensidão do oceano. Eu estava novamente no Lobo-do-mar no mar alto. Eu a lançar as redes no imenso lençol azul e o sol a bater-me nos olhos, magoando-me. E eu a sorrir, feliz. As mãos magoadas das cordas e do nylon da rede, das horas na água e do sal na pele a doer. E eu a sorrir, feliz!

 

Ouvi vozes ao longe e quis abrir os olhos mas não consegui. Ao longe ouvi vozes difusas a dizer que o choque me tinha feito enlouquecer…

 

 

 

 

Texto de ficção escrito para a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira

sinto-me: de volta!
publicado por magnolia às 00:43
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