Domingo, 6 de Fevereiro de 2011

Página em Branco

 

Deus encontrou-me na berma da estrada, quando me sentei, quebrada, para descansar. As minhas lágrimas, grossas, caiam-me no vestido que eu sabia ser vermelho, mas que eu não via senão cinza e deixavam grandes marcas redondas mais escuras. Sucumbi ao cansaço extremo da caminhada que fazia e deixei-me cair naquela beira de estrada perdida do mundo. Olhei o céu mas o não vi azul, depois olhei as copas das árvores e não as vi verdes. Também não senti o cheiro das flores silvestres que por ali cresciam livres e despreocupadas da vida. E os pássaros, criaturas livres que esvoaçavam por ali, não os ouvi também. Nada parecia bulir ao meu redor. O cinzento pigmentava tudo e a minha alma era da cor das rochas vulcânicas.

Deus disse-me:

- Que tens mulher?

- Estou cansada da minha vida… - respondi eu a custo.

E Deus que tudo vê, disse-me então.

- Sei de que precisas. Vou dar-me uma oportunidade única na vida. Uma página em branco onde poderás reescrever tudo!

Eu, que mal conseguia sustentar-me de pé, agradeci e pela primeira vez em muito tempo, esbocei um sorriso. Pensei na possibilidade de começar tudo de novo e em como seria apagar todos os erros cometidos, excluir pessoas que me magoaram.

Então de repente, como por magia, tudo ficou branco e silencioso à minha volta. Não havia estrada, nem muros, nem árvores, nem céu, nem pássaros. Nada. Apenas o vazio. Na minha mão uma folha e um lápis. Pensei então que o ideal seria começar do inicio, do dia em nasci.

Ia para escrever que tinha nascido de pais ricos quando me apercebi que então não poderiam ser os meus. E eu não queria outros pais, queria aqueles que tanto me haviam ensinado e amado. Então escrevi que queria os mesmos. Depois pensei nos meus irmãos e percebi, mesmo na imensidão branca onde estava, que gostava tanto deles que me seria impossível nunca mais os ver. Também não queria outros irmãos. Então escrevi que queria os mesmos pais e os mesmos irmãos. Depois pensei em andar numa escola diferente onde pudesse fazer amigos, mas depois pensei com saudades na primeira vez que me sentei num dos bancos da escola, que depois os meus filhos haveriam de se sentar nos mesmos, na professora que sempre me elogiou e pensei que não queria outra escola, nem outra professora. Então escrevi que queria os meus pais, os mesmos irmãos, a mesma escola e a mesma professora. Depois pensei que não queria ter tido o mesmo marido mas rapidamente entendi que mesmo no meio da tristeza houveram coisas boas e filhos maravilhosos que com outro marido não poderiam de maneira nenhuma ser os mesmos. Então na minha história nova ficaram os mesmos pais, os mesmos irmãos, a mesma escola, a mesma professora, o mesmo marido.

Foi nessa altura que uma saudade dolorosa invadiu todo o meu ser e só pensava que queria abraçar os meus filhos, apertá-los nos meus braços, beijá-los muitos, tê-los perto de mim, carne com carne. Pensei que gostaria de partilhar um abraço com aquele que foi meu marido, agradecer pelos bons momentos e perdoar os menos bons. Senti uma grande vontade de voltar aos bancos da escola, de voltar a aprender coisas novas, de ter alguém que me elogiasse e incentivasse a ser sempre boa em tudo o que fizesse. Apetecia-me abraçar os meus irmãos e lembrá-los que os amos muito. E ao mesmo tempo queria tanto agradecer aos meus pais por me terem feito quem sou, pela educação que me deram, pelos valores que me incutiram, pelo amor, por todo o amor...

Por fim, pensei nas tardes solarengas de verão da minha infância, do céu tão azul como nunca mais vi outro, das nuvens com formas que me faziam voar a imaginação para lugares longínquos, das flores amarelas que eu juntava em colares e pulseiras e coroas de princesa, nas amoras que colhia nos caminhos velhos e me sabiam pela vida…

Por fim, o pensamento mais importante de todos entre todos, pensei no dia de nascimento dos meus filhos, na primeira vez que os vi, nus, indefesos, frágeis, enrugados, pequeninos. Pensei na felicidade que me encheu o coração, na promessa intrínseca de os proteger e amar até ao fim da vida. Pensei na alegria de ser mãe, de ter criado um novo ser, perfeito e belo como mais nenhum. Agradeci ter sido tão bafejada pela sorte ao conceder-me o privilégio de ter tido aqueles filhos, os meus filhos.

E foi mais ou menos por aqui que os meus lábios formaram um sorriso aberto incontrolável e foi mais ou menos por aqui que abri os olhos e me senti dorida da pedra dura onde me tinha sentado e vi o céu azul, as árvores verdes, os pássaros a cantar, os pequenos dente-de-leão amarelos que cresciam ali mesmo na berma da estrada e que eu podia tocar se quisesse. E o vestido. O vestido vermelho ainda húmido das minhas lágrimas…

Levantei-me e não senti cansaço nenhum. Segui caminho como se tivesse apenas começado agora a caminhar. Senti que tinha forças para caminhar até ao fim do mundo se preciso fosse. Senti que estava viva e que, acima de tudo, queria continuar viva por mim, e por todos aqueles que fazem parte da minha vida, e farão.

Na verdade, tenho de dizer a Deus quando o encontrar de novo, que não tenho necessidade nenhuma de uma página em branco…

 

Texto de ficção escrito para a Fábrica de Histórias por Cláudia Moreira

sinto-me: pensativa
publicado por magnolia às 22:58
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